quinta-feira, 27 de agosto de 2020

MOUSTACHE_ Leite faz mal

 


Então você me perguntava o que eu achava do seu novo show.

Eu dizia que gostava muito,

mas que isso não valia muito

porque eu gosto de coisas estranhas

e quase tudo que eu gosto quase ninguém mais gosta.

Quando gosta

eu já não gosto mais.

 

Tinha uma carta na sua mesa de cabeceira escrita à lápis:

“Moustache”.

Moustache à grafite, envelope branco, caligrafia torta.

Tinham umas linhas vermelhas dentro do envelope

E umas gotas de tinta mostarda.

 

Eu tentava ler a carta

Porque me gostam as cartas.

E essa carta era endereçada a mim

_ou ao menos eu queria muito que fosse_

Mesmo em sonho eu podia, facilmente, ler todas aquelas letras.

Alguém sempre me interrompia, mas eu podia ler as letras na carta

e isso me impressionou.

 

Ler letras nos sonhos é coisa muito difícil.

Fiz o café

abri o laptop sobre a mesa da cozinha

e, depois de detectar o leve princípio da rinite que vem me aporrinhar,

eu não sei, de verdade, dizer

se a recente fluência em letras nos sonhos é coisa boa ou má.

 

Talvez não seja nenhuma das duas e pode ser que isso tenha sido mesmo causa de comer cinco brownies de chocolate ao leite antes de dormir.

Leite faz mal.


Ana G. Rebelo

@Ana.Cravo.Ana.Canela


domingo, 24 de maio de 2020

REAL-POSSÍVEL





Tenho dificuldade com texto requentado. Cada vez que começo um trabalho sinto que preciso fazer tudo, absolutamente tudo, a partir do mais perfeito-zerado começo. Sou perfeccionista. Aprendi isso sobre mim mesma depois de algum bom tempo de terapia. Aprendi também que o perfeccionismo pode ser uma forma de não materializar as coisas. O ideal perfeccionista é um caminho de ouro para a não realização do real-possível. Preciso aprender, dia após dia, a lidar com o real-possível. Preciso aprender a requentar textos_ com o cuidado de não tomar esta tarefa como mais um ideal impossível.


Ana Gabriela Rebelo

@Ana.Cravo.Ana.Canela

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A minha bisa lia mão



Essa coisa de ler café tem assim um gosto de poder mais devagar, principalmente se o café é de coador de pano. A gente esquenta a água, abre o pó, deixa o cheiro tomar a casa, escolhe a xícara, copo, chávena. Essa coisa de ler tem um gosto pelo vagar. A minha bisa lia mão, minha vó lia cartas, minha mãe lê pétala de flor e eu leio café. Às vezes também leio nuvem e quando, de vez em quando, a espuminha da cerveja me diz alguma coisa. Essa coisa de ler, vagar e escutar tem me feito assim, desse jeito, desde que eu nasci. Ou melhor seria: desde que a bisa nasceu, e sua bisa, e a bisa da bisa da bisa... Eu gosto de ler sonhos também, mas ler café sempre tem, para mim, essa coisa assim mais evidente de um poder ancestral das bisas.


Ana Gabriela Rebelo

@Ana.Cravo.Ana.Canela

sexta-feira, 20 de março de 2020

Vestidos de passear_ espero que esteja bem




Na última semana eu saí pra passear, tinha um barulho bem embaixo da janela de casa e fazia tempo que eu não descia. Então foi isso, calcei uns tênis velhos que ganhei em algum último natal, botei as chaves no bolso do short e saí pra passear. A mãe sempre saía pra passear, mas no fundo eu sei que ela não gostava de sair pra passear porque sempre que a mãe saía pra passear precisava antes passar maquiagem e fazer o cabelo. A mãe tinha as unhas dos pés pintadas e eu sei que isso devia dar trabalho, então eu sei que essa coisa toda de sair pra passear carregava uma espécie de tortura implícita nos fios de cabelo modelados e nos botões de fechar as costas dos vestidos novos. Vestidos de passear, a mãe comprava vestidos de passear.

Na última semana eu saí de casa. Desci as escadas porque o elevador poderia pifar e eu nunca que fiquei presa em elevador e só de pensar que um dia eu poderia ficar presa em elevador isso me dá um nervoso de querer me matar. Então eu desci mesmo a pé com aqueles tênis de corrida velhos que você me deu em algum dia desses de natal. Tinha muito tempo que eu não via ninguém, o céu tinha nublado e você estava lá na areia com os olhos fechados em cima de uma canga colorida de vermelho. Eu cheguei perto com a chave chacoalhando no bolso do short e você se assustou, perguntou se eu queria sentar. Eu te olhei e bem senti que queria, mas aí pensei e quando penso não sei se você tem por hábito me convidar por educação ou se é mesmo por querer esse modo estranho com que me diz palavras atrapalhadas. Não respondi, não sei lidar com educação.
 De dentro da água uma criança gritava, mas eu olhei e não se via nada. Talvez já tivesse afundado. Você perguntou se eu queria alguma coisa pra beber e eu achei estranho porque as pessoas em volta estavam assustadas e, além da água do mar, não tinha nada ali, nada que se pudesse beber. Você sorriu. Uma fumaça subia da mata seca no alto da encosta, alguém botou fogo naquele lado da orla e de longe se escutava, sim, do outro lado da rua já se escutava, a criança que gritava em algum ponto de dentro da água. Eu te falei? Eu disse que ela morreu? Você sorriu. O cabelo desgrenhado em meio a fumaça do cigarro que queimava na sua boca puxando o ar quente entre as palavras. Você me falou, a criança morreu. Olhei pra baixo e os tênis nos meus pés já pareciam mais surrados do que dez minutos atrás.

Como foi mesmo? Eu já não lembro como foi que a gente se conheceu, lembro que tava escuro e tinham uns quinhentos discos pesando na prateleira por cima das nossas cabeças e que estranho que eles não caíram antes d’eu sair. Antes d’eu sair você botou um terno e eu achei que fosse especial por isso tentei falar alguma coisa que fosse também especial, mas sempre qu’eu acho que é especial fica difícil de falar porque aí eu penso muito e aí não dá. Liguei pra sua casa ontem de impulso, mas ninguém atendeu. Deixei um recado gravado na sua secretária eletrônica, mas esqueci que você não tem secretária eletrônica, então me perdoa, perdoa-me, doa-me, Donana. Eu ando esquecendo assim das coisas desde qu’eu nasci. Na última semana eu saí pra passear, mas esqueci qu’eu nunca tive vestidos de passear e que às ruas hoje não se sai mais ninguém. Uma mulher gritou da varanda alguma coisa qualquer enquanto o fogo subia no alto da encosta e você sorria de cima da sua canga vermelha estendida na areia. Você se esquece, você se esqueceu também, mas tá tudo bem. Eu só liguei pra dizer que naquele dia, em que uma criança gritava de dentro do mar, você me perguntou se eu queria sentar e eu queria. Talvez você não consiga me ligar de volta, meu telefone mudou. Estou em casa, estou bem, espero que esteja bem também.

Ana Gabriela Rebelo

@Ana.Cravo.Ana.Canela

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Perdi o sonho




Perdi o sonho. Dormi, sonhei e as imagens vieram muitas_ todas que eu precisava.
E eu perdi.

Porque quando eu acordei fui logo olhar o celular e essa merda desse vício me tirou os sonhos que eu tenho e que se espalham em mim querendo me minar de múltiplas-oníricas-coisas,
Mas aí eu fui lá e perdi.

Perdi o sonho
Perdi o tempo
Perdi a noite e o dia também.

Ana Gabriela Rebelo

@Ana.Cravo.Ana.Canela

sexta-feira, 15 de março de 2019

gosto ruim na boca




Eu tenho um sonho antigo que persiste como um gosto ruim na boca.

Era uma sopa, uma sopa de vinho. Mas o líquido em minha cuia era verde, um verde translúcido misturado ao arroz bem branco colado como pão_ talvez fosse pão. Talvez eu tivesse bem uns quatro ou cinco anos quando sonhei esse sonho que me fez acordar torcendo a boca na investida imediata contra aquilo que de alguma forma se mostrava como marca, agora não mais, inconsciente.

Algumas coisas posso dizer sobre isso, dos sonhos e dessas imagens que se cruzam e têm gosto, dor e cheiro próprios. Alguma coisa no meu caminho é certamente ligada de forma íntima à essa experiência do sonhar. Mas o que me chama atenção hoje, depois de mais de vinte anos desse acontecimento, é que possa eu ainda torcer a boca e sentir o gosto daquele sonho ao me deparar com qualquer bebida real que me lembre àquela da sopa de vinho verde.

Talvez a composição da matéria do sonho seja mais resistente que as fibras da matéria da carne. Talvez ainda, seja a carne, matéria mais onírica do que cotidianamente exercitamos constatar.

Eu tenho um gosto antigo que persiste como sonho ruim na boca.  

Ana Gabriela Rebelo _
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