Sabe isso de partir o mundo? Partir de partilha, de partilhar dos mesmos
olhos que veem o mundo. Partir pode ser separação, partida. Separação pode
doer. Separação também pode ser junção, quando separar é manter-se junto com
aquilo que se escolhe querer. Quando você foi embora, foi assim como quando
chegou. Separar de você foi como deixar claro a nossa partilha de ser junto.
Eu fui no teu velório. E chegando lá a primeira pessoa
que procurei foi você mesmo. Não pelo óbvio encontro com o morto, mas pelo
encontro com o íntimo. Quando se chega em uma festa, um jantar ou até mesmo em uma
aula, a primeira coisa que se faz é procurar por alguém com quem nos sintamos
mais à vontade. Aquela pessoa que realmente se espera, que faz sentido e
alegria de encontrar e contar coisas sobre nada. Contar coisas sobre nada não é
pra qualquer um. Tem que se ter partilha, olho, memória junta, piada junto...
Lembro de uma das suas primeiras ligações pra minha casa.
Sim, nós éramos adolescentes e ainda ligávamos pra casa um do outro, e
conhecíamos as vozes dos pais e irmãs um do outro. Nessa lembrança meu pai
atende teu telefonema. E posso escutar agora o jeito com que você fala ao
telefone: rindo, sem jeito e ao mesmo tempo espalhafatoso e febril. Você sempre
foi febril. Olha, as ideias que trocava com meu pai sempre foram incríveis e
suponho que tenha começado aí, nesse telefonema. Eu estava no banho e escutei
meu pai rindo na sala. Alto, alegre, cheio de farfalhos ele me gritou sonoro:
“_Filha! Telefone pra você, é o Astro Magnésio!” Saí do quarto e peguei o telefone.
Do outro lado, em um bairro vizinho você também ria. Ria muito e exaltava seu novo
nome: Astro Magnésio! Muito bom, genial! Pra melhorar, somente o acréscimo do
“vulgo Mg”.
Aqui no meu telefone
você ainda está “Vila”. E Vila ninguém entende. Também não é pra ninguém
entender, só eu te chamava assim. Muito cedo achei que esse nome soava bem, e
era uma romântica combinação sonora-gráfica-afetiva de Velasquez com Villa
Lobos. O afeto é único, é de se esperar que ninguém mais entenda. É mais
incrível ainda que ninguém mais entenda.
Ontem sonhei com você. Você aparecia novo, um menino. Eu
te abraçava.
Sempre te abraço nos sonhos. Uma vez sonhei
que estava num ônibus e te via pela janela. Você estava na varanda de uma casa,
a casa estava em festa. O ônibus seguia viagem enquanto você caminhava para
dentro da casa. Eu pulava do ônibus. Pulava mesmo, da janela. E saia correndo
pra te encontrar. É sempre assim, desde que você foi embora eu corro pra te
abraçar.
Sabe solidão? Tem solidão e solidão. Tem solidão rasa e
comum que é achar que se está só por estar sem falar com ninguém durante uma
tarde. Tem solidão que é crua no corpo, solidão de não ser olhado, tocado,
ouvido, acarinhado na pele. Tem solidão que é boa. De espaço, de calmaria, de
café longo e pensamento de nuvem.
A solidão que senti
quando você foi embora não era nenhuma dessas, era solidão de mundo. Como se a
partilha de mundo com você fosse tão rara que, a partir dessa separação eu
precisasse duvidar sobre tudo aquilo que acreditava ser real. A partilha com
você legitimava o mundo que faz mais sentido escolher para mim.
E isso faz sentido? Não
sei, não sei exatamente o sentido que isso faz. O que sei é que não acredito
que exista um mundo assim tão acreditável. Sei que desconfio desse mundo
comprovável e me sinto mais atraída por um mundo provável. Sei que as febres
são indicadores de infecções no corpo e isso não diz quase nada. Ainda não sei do
corpo mais do que aquilo que partilho corpo. E a partilha é recorte. Partilha é
sempre de olhos, de parceria, de cheiro, de unha, de nome, de cor...
Partir nesse sentido é
partilha.
Partilha nunca é de
todo mundo.
Ana Gabriela e Anarquia no coração