sábado, 20 de maio de 2017

Rio de Janeiro, 24 de Outubro de 1991



A carta que escrevo hoje é rápida. Não tenho muito o que contar, só saudade. Saudade de parar com você e não precisar falar nada. Por aqui todo mundo fala muito. É sempre uma dor de cabeça, alguém novo que nasceu, um primo sei lá de quem que anda mudado e aí incomoda todo mundo. Não sei porque se incomodam tanto. Acho que essa coisa de não ser mais quem a gente era incomoda os outros que não são a gente.
    Tem um tempo que não escuto mais música de manhã. Lembra do Cartola? Pois é, Cartola continua sendo manhã, café e saudade de madrugada. Mas já faz uns três dias ou um mês que não escuto mais Cartola de manhã. Aquele disco que você mandou ainda não chegou, mas também ainda não comprei a vitrola. Até fui à feira, mas acabei me perdendo. Tem uma moça que vende cartas na beira da rua da relação, cartas e fotografias.
    Lembra aquele dia que te encontrei no ponto? Tava tarde, né? Já tava tarde quando a gente chegou, e o ônibus ainda demorou bem mais umas duas horas, ou foi uma..? Não sei, esse troço de tempo é estranho mesmo. As horas contadas eu não sei. As horas sentidas sei menos ainda. Porque parece que não foi nada, parece que foi só estar ali com você. Sem tempo, sem hora, sem nada disso que vai cortando a gente e que demora.
    Não sinto demora se te escrevo, sinto demora de esperar te ler. Aquele dia do ponto eu soube da demora quando cheguei em casa e o dia estava claro. Sabe que naquele dia mesmo o primo ligou? Achei estranho. Não sabia seu sobrenome, nem sei... Ele é mesmo primo de quem? Foi bondoso ao telefone. Voz bondosa de igreja, sabe? Queria almoçar e saber como estava a família. Fiquei confuso, família de quem?
Olha, achei uma coisa que você vai gostar. Uma vez por mês, o porteiro aqui do prédio desce às quatro da manhã, todo arrumado. Camisa bem passada, cabelo lavado, sapato de bico. No bolso da frente da camisa ele leva um papel dobrado em vinte partes. Parece um pequeno pacote. Sei das vinte partes porque eu mesmo contei algumas vezes.
Ontem foi o dia de descer e, como de costume, foram bem uns cinquenta minutos sentado no banco da frente do prédio, revirando o papel nas mãos. Ontem o papel caiu. Descuido... Antes de recolocar o papel no bolso, em um pequeno desvio, o papel caiu. Ele nem viu... Mas eu achei, achei o papel! Tem um desenho nele, um desenho de um homem e um cachorro. Recontei, ele é dobrado vinte vezes. Não sei do que se trata, sei que vai gostar.
Um abraço,

Lavínia”

A. Gabriela