quarta-feira, 22 de março de 2017

O táxi de Hitchcock



O amor é uma batida entre dois táxis.
Como se, em um dia tranquilo, Florence saísse para comprar leite e de súbito percebesse a impossibilidade absoluta de, naquele dia, chegar à mercearia. Florence não sabe explicar o porquê exato deste acontecimento, alguma coisa simplesmente torna diferente a rotina semanal de calçar os sapatos, ajeitar o cabelo e sair para comprar leite.
Uma batida é a quebra de rotina que leva a retenção de trânsito, desvio de percurso, susto e quiçá a necessidade de acionar uma ambulância. Florence nunca andou de ambulância, tem medo de quebrar uma perna, cortar a unha, entrar em coma ou sofrer escoriações que lhe marquem a pele. Certamente andar de ambulância não está entre os sonhos mais comuns dos adeptos aos táxis, ou da maioria dos adultos. As crianças, ao contrário, gostam. É incrível como um carro sozinho pode fazer tanto barulho e acender luzes e repetir infindavelmente aquele ioiô sonoro comprido que vai se alastrando como um fio invisível que se desdobra e aumenta a cidade. A criança e o louco gostam da ambulância, querem entrar nela para tocar o alarme.
O amor é a batida entre dois táxis.
Imaginem que um dia, durante a madrugada, dois carros colidem bem embaixo da janela do quarto de dormir, e Florence acorda, olha em torno, vai até a janela e sem pensar desce pelas escadas de incêndio até a rua sem calçar os sapatos. É isso.
Não sei até que ponto os planos de enamoramento destroem a batida. Entendendo que o choque entre taxis é imprevisto, sabemos que seguir à risca conforme o plano destrói o amor, mas não sabemos ainda a dimensão dessa destruição. Ter o cuidado de nunca esquecer de calçar os sapatos, não torna Florence imune ao esquecimento súbito de seus pés; porém, dependendo da seriedade com que ela leva essa precaução, a simples afirmação diária de fechar zíperes pode ser uma mina estrutural nas fundações do amor.
O amor é a batida entre dois táxis.

Não sei convencionar quem leva quem, ou o quê. Numa cena de Hitchcock seria suspense, uma brecha de silêncio, uns olhos percebidos pelo retrovisor. Talvez o motorista não saiba o caminho, talvez chova, ou existam animais fora de seu ciclo natural que durante o mais normal dos dias colidem junto ao para brisas do carro, entram pelas janelas laterais e façam Florence pensar que realmente sair de sapatos nos pés nunca fez mesmo o menor sentido.

Ana Gabriela Rebelo

 https://www.paisagenspossiveis.com/22-metros