quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Sobre maridos e cachorros

Rio de Janeiro, 4 de junho de 2015

A marca de se pensar sobre a marca. Renuncio a vaidade de pensar sozinha e apareço como aquele outro que pensa meu pensamento. E aí o pensamento não é mais somente meu.
Ter ciúmes do que se pensa é algo comum? É algo com que deva me preocupar? Não sei... Mas também já não me importa.

Escrevo duas ou três linhas a cada dia. Pode ser muito. Pode ser bom, pode estar bem assim. Pois, afinal, o que é tudo isso que ocupa cinquenta páginas de linhas? Se forem cinquenta linhas de uma hora, eu aceito. Se forem cinquenta linhas de horas descritas, eu me chateio. Não tenho paciência para descrições obsessivas. Não tenho sangue para o que não tem sangue.

Escuto o barulho lá fora, a rua me chama para um café. Penso que seria bom tomar uma sopa e ver as pessoas passando. Pessoas com seus cachorros.  Pessoas com seus cigarros e maridos. Eu deveria arrumar um marido para alimentar e um cachorro pra passear. Deveria ter filhos e escrever um bendito livro. Poderia fazer uma bela dedicatória: “ Ao meu amor, que me viu ensandecer nas madrugadas sem sono e, ainda assim, não sabe nada sobre mim.”

Ana Gabriela

Sem cachorros e sem maridos

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Pedido de aniversário, rabiscos, delicadeza_ carta ao meu pai


    Tenho tido o cuidado de me deitar sobre essa palavra: delicadeza. Em uma conversa de botequim, dois bêbados devaneiam sobre o mundo. Mundo redondo, mundo quadrado, mundo sob mundo... mundo grão de areia! Areia tamanho do mundo.
     - Sabe que a embriaguez te cai bem?
     É embriagado que experimento aquele momento único de lucidez. Aquele fio, meio fio entre a calçada sólida e a água que escorre extensa pelo cantinho da rua. Gosto dos bares. Gosto de poder ir e vir pelos bares. As noites e dias são livres para ir e vir e, por isso mesmo, permanecem sempre na sua rotina milenar de infinitas viagens. Sabe, se eu pudesse pedir um presente, um só presente, pediria viagens. Penso nas viagens que faço, penso que daqui mais uns dias completo 30 viagens na Terra, girante astro solar! Mais de dez mil e novecentos sóis que se põem e nascem sempre no espanto de cada dia.
    Sou adiantada na escola. Minha mãe me conta que, quando era pequena, as “tias” resolveram me pular de série. Pulei o maternal, maternal é série? Maternal não é aquele tempo em que fazemos rabiscos e colorimos e usamos purpurina? Por que pulei o maternal? As purpurinas são brilhantes e os rabiscos são as coisas mais gostosas do mundo! _ “Filha, você pulou o maternal porque na hora das historinhas que as tias contavam, sua turma fazia muito barulho e você não gostava. Ficava triste porque queria ouvir as histórias. ” Ah tá, entendi. É realmente ruim quando a história pára por causa de muito barulho. Não que eu não goste dos barulhos, não que eu não tenha meus próprios barulhos. Acho que o incômodo acontece quando tem um barulho sozinho, gigante, grandão! Um barulho muito alto e abusado que não dá espaço para mais nenhum outro barulho passar.
    O Antoine de Saint-Exupéry, pai do pequeno príncipe, cuidou muito bem para que o menino continuasse rabiscando. Eu saí do maternal muito cedo por motivo de excesso de barulho.  Meus pais tiveram o cuidado de cuidar do meu silêncio para não deixar parar as histórias do mundo. Meus pais tiveram a delicadeza de harmonizar barulhos e não me podar os rabiscos. Penso que o maior trabalho dos pais seja este: educar os filhos para que cuidem de seus próprios barulhos. Aprender a cuidar dos próprios barulhos é exercício diário de cuidado com o outro. Aprender a harmonizar silêncios sem perder os rabiscos é a delicadeza do cuidado que preciso ter sempre comigo mesma, para poder cuidar das histórias do mundo.
    O cuidado, o cuidado, o cuidado sempre! O cuidado que aparece sempre de tantas formas, em todas as coisas. E agora, na hora de fazer um pedido de aniversário, ele aparece novamente.
_ “Vai, faz um pedido! Um só, só vale um pedido! O que você quer de aniversário? ”
_ “Eu quero viagens! ”
  _“ Viagens? Ora, mas podia ter dito logo! Que ideia mais maçante escrever um conto inteiro, artigo, crônica ou sei lá... para fazer um pedido simples, direto. Para onde você quer ir?”

   _Bom.... eu quero ir aonde eu quiser ir. Quero ir a Lisboa. Quero ir no bar aqui da rua, quero acompanhar a água que desce junto ao meio fio até chegar na padaria. Acho que meu pedido mais exato seria: quero liberdade para as viagens.
_”Ué, mas liberdade você tem. Você é livre para fazer o que quiser, passarinha. O que quiser.”

É verdade, pai. Mas aí eu me lembro que, na época do maternal, quando eu comecei a chegar triste em casa, você cuidou de mim. E o maior cuidado foi a delicadeza de perceber que eu precisava de espaço para fazer farfalhar meus próprios barulhos. Fico pensando no sentido que isso tem. Fico tentando entender como isso tem a ver com o aprendizado que tem sido cuidar de mim mesma e como, sempre e a cada vez que cuido de mim mesma, isso deixa o teu caminho mais tranquilo e leve. Meu pedido de aniversário é o mais simples e o mais difícil do mundo. Porque ser livre e fazer viagens para onde você quiser é um pedido por leveza. Assim, é preciso primeiro entender que as viagens para onde queremos estão ligadas a todas as outras viagens do mundo! É como se estivéssemos todos numa grande sala de maternal. Lá estão os barulhinhos e os barulhões. Os barulhões precisam aprender a não ocupar todo o espaço da sala. E os barulhinhos precisam aprender a se fazer escutar e cuidar para que não tomem seu espaço de rabiscos. Nenhuma das duas tarefas é fácil, as duas precisam de delicadeza porque, afinal de contas, as histórias do mundo não podem parar.
    Eu nunca deixei de desenhar. Eu nunca deixei de gostar de escutar histórias. O meu pedido hoje é o mais difícil e o mais simples: o meu pedido é que você cuide do seu espaço de rabiscos. E esse é o melhor presente que você pode me dar. Porque a cada vez que você chega em casa triste, o meu caminho fica menos leve. O maior cuidado que posso ter com o outro é o cuidado que tenho comigo mesma. Liberdade para viagens só acontece de fato quando há espaço na sala. E aí você entende que o maior cuidado que você pode ter com o outro é o cuidado com a harmonia entre barulhos, é o cuidado com aquilo que é seu próprio tempo, seu próprio espaço. O meu maior presente de aniversário hoje, seria você aprender aquilo que me ensinou há muitos sóis atrás:  tratar de cuidar de si mesmo é, antes de tudo, a delicadeza de presentear leves viagens ao outro.

Ao meu pai e à minha mãe
          
           Ana Gabi
                 Biela
                      Bibi
                        Gabriela

               

domingo, 1 de novembro de 2015

Pássaro-Céu

O pássaro voa.
Tranquilo, silencioso, sentindo o vento passar por cada pena azul.
Alguns homens acreditam, de verdade, que a pena traz sorte. Eles veem o voo, a leveza do pássaro na amplitude do céu. E ilusionam que a mágica está na pena! Eles não veem o voo, nem a amplidude do movimento do céu. O que eles veem?

    Guardam bem guardada! No bolso, na gaveta,...  Fazem um chaveiro ou colecionam numa caixa de sapatos: um monte de peninhas!
  
 Precisamos parar de guardar penas!
 O pássaro há no céu.

   Ana Gabriela Pajaro

            Ana Nuvem

                   Ana Canela