terça-feira, 6 de novembro de 2018

As velhinhas


Os varais de roupas negras eram as velhinhas que se encontravam todas as tardes para contar de suas dores. Penso que tem dias em que sabemo-nos mais breves que outros. Mas são sempre os outros, os outros que nos tornam permanentes. Envelheci no corte.

_ A.G.R.
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segunda-feira, 29 de outubro de 2018


Não nos afastemos_ poema de tempo presente

Acordei revirando os potes de biscoito
Despensa, fundos de gavetas
Geladeiras


Não me recordo de ter tido sonho algum
Acordei sem saber da hora exata
Porque hora de acordar é quando o corpo acorda
E com o corpo eu prefiro ser suave

Quase sempre eu lembro dos sonhos
Mas hoje não
Então hoje eu acordei de alguma coisa como uma noite sem sonhos
E fui revirar a casa
Sala vazia, cozinha, corredor
O quarto a meia luz com os lençóis amassados

Vesti uma blusa de manga longa que já quase não me coube mais
Faz frio lá fora e o tempo fechou
e parece que...
_ ou até mesmo_
não amanheceu
Quase sempre eu lembro dos meus sonhos
Mas hoje não
Então eu revirei gavetas
E cabides
Janelas
Potes de temperos pela cozinha
Cafés, números de telefones, álbuns antigos de música popular brasileira
Cadernos, cartas escritas a mão
Janelas para escrever cartas escritas a mão

Hoje eu acordei revirando as coisas
Tentando cavar um espaço
no silêncio escuro
que fez nesta noite em que eu não pude me lembrar dos meus sonhos
Mas eu sempre lembro dos sonhos! _quase sempre eu lembro dos sonhos...

Pensei que poderia escrever ontem mesmo
Mas ontem eu não pude_ tem dias que a gente não pode
Tem dia em que faz silêncio e é bom
Mas tem silêncio que faz o dia e aí não é bom
E ontem...
ontem eu dormi com esse silêncio de uma noite sem sonhos
E isso não é bom

Por isso hoje eu acordei revirando os potes de biscoito
Despensa, fundos de gavetas e geladeiras
Hoje eu acordei revirando palavra em sonho
Porque tem coisa que a gente não lembra e passa
Mas tem coisa de memória que a gente não vive sem

A minha existência sempre foi de corpo
E no meu corpo habitam as delicadezas
 As palavras, o coração
As febres, as doenças de enamoramentos
Os frisos, as dobras, as rachaduras e vozes
A fragilidade
As intermitências, modulações,
Nuances, estranhamentos, múltiplos sentidos

Então, hoje eu acordei revirando os potes de biscoito
Sapatos, despensa, fundos de gavetas
Estantes, geladeiras
  
Tá faltando poesia na despensa
E tem coisa que a gente não vive sem
Tá faltando coisa pra encher o pote
Tá faltando pele, tá faltando palavra
Pessoa, Caio, Clarice
 Freire, Manoel, Cora
Glauber, Chico, Boal
Patativa

O negócio é que tá com falta de gente que entenda Patativa
E por isso deve ser
Que eu acordei dessa noite sem sonhos
E resolvi continuar fazendo isso que eu sempre faço
Buscar palavras
Estranhar palavras
Revirar palavras
E grifar à mão livre essas coisas que são algo como que sonhos
 para que possamos botar dentro dos potes
E nos armários e fora deles também

Nas ruas, nas esquinas, nos sinais
Nas portas das casas, e nos pisos das varandas
Hoje eu acordei revirando as coisas
Para que nos nossos silêncios não nos faltem palavras
Para que nos próximos dias possam ainda haver coisas como sonhos
E ruas, e escolas
E versos e Pessoas e Drummonds e varandas
para que possamos permanecer de mãos dadas
e rexistir nas delicadezas
No tempo presente, na vida presente
não nos afastemos


A.G.R.











quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Tempo de encontros



Fico pensando no tempo q levamos para nos encontrar, na raridade dos encontros. Mergulhos e superfícies. Me angustia a imagem de um grande homem no fundo do mar, o corpo humano pequeno, macio, encharcado de água e sal diante do enorme gigante de pedra no fundo do mar. Fico pensando na raridade do tempo de encontros e na falta que isso faz.

Ana G.
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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

PIZZAS, aplicativos e telas nas janelas




Se o peixinho brilhar com LED e fizer barulhos digitalizados é porque você está no século XXI, isso significa também que o seu bichano orgânico é meramente opcional.
Quando eu era pequena, no início dos anos 90 na cidade do Rio de Janeiro, andava pelas ruas ao redor de casa puxando um pequeno cachorro de pano esganado com um cinto de couro pelo pescoço. No natal, escrevendo a carta ao senhor Noel, eu sempre pedia um cachorro de verdade, mas a mamãe dizia ao Noel que não podia me dar o cachorro. ─Por que? Porque cachorro suja, faz cocô, xixi, respira, solta pelo, pum e tem que passear e comer e tudo mais que daria muito trabalho a ela. Por isso ganhei uma tartaruga.

Se eu tivesse nascido depois seria mais fácil, ou então poderia ter nascido direto no Japão já que as tecnologias de lá estão a anos luz de distância da nossa vida orgânica. Os japoneses consomem animais robôs, humanos robôs e até mesmo os rabos robôs. Se você não sabe no que consiste um rabo robô, é porque precisa conhecer melhor outras pessoas e essa fabulosa invenção vai te ajudar nessa tarefa. Basta acoplar o charmoso acessório ao seu quadril e sair por aí, assim que você avistar uma pessoa que te agrada o rabo robô irá automaticamente abanar e assim seu crush saberá que pode se aproximar sem maiores riscos.

Se eu tivesse nascido hoje poderia recorrer a techno-bichinhos mais sofisticados que os tamagotchis, poderia ter uma foca bebê com saída USB que se move e respira mexendo sua pelugem quentinha enquanto dorme no meu colo. Quando era pequena já quis também ter cavalinhos e uma vez sonhei com dois pequeniníssimos elefantes que brincavam na minha sala. Até hoje gostaria que fossem reais, ainda que não tenha mais a vontade incontrolável de ter animais domésticos que me fazia estrangular bichos de pano pelas ruas.

Acho que hoje teria um gato, um gato e nada mais. Um bichano orgânico mesmo, porém moderninho_ que ele assistisse Netflix comigo, me incomodasse na hora do café e jogasse aplicativos no seu tablet, isso bastaria. O clássico moderno para gatos antenados é o caça peixes de LED, diversão garantida para uma bela farra de apartamento entelado. Mozão e relacionamentos sem rabos são negócios que andam mesmo muito arriscados, e talvez isso venha de um desarranjo estrutural de incompatibilidades entre sangue e Wireless. Ainda podemos sonhar e baixar aplicativos, netflix, popcorn, pôr telas nas janelas e pedir pizzas_  Acho que a modernidade é isso: + LEDS – riscos.


Ana LEDbriela

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Saltos antigravitacionais





Eu tenho saltos antigravitacionais. Como assim? Como é isso?
Algumas pessoas podem ser extremamente equilibradas na sua respiração, ou seja, elas inspiram e expiram de forma regular na balança, intercalam os movimentos para dentro e para fora. Admiro essas pessoas e confesso de pronto que não tenho a menor habilidade para tal façanha equilibrista. Eu vivo dentro. Dentro, fundo e mais dentro e mais fundo mergulho e é de vez em quando que saio e aí chegamos a ele: o salto antigravitacional.
Imagine que a força que te prende é toda e tanta pra si e que, sem aviso, ela resolve reverter a direção e expandir inteira em segundos... esse é o movimento: nunca saí de mansinho, eu saio em saltos.
Sempre fui muito introvertida. Quem me conhece sabe que tenho longos tempos de reclusão. Quando criança era inclusive extremamente tímida_ tinha medo da minha voz soando alto nesses espaços com pessoas. Sempre tive cá meus mundos subaquáticos e é sempre um exercício que demanda energia imensa sair deles e circular fora. Lá fora é bom, mas é quente. E rápido também, lá fora é tudo muito veloz e cheio e isso tudo me cansa. Mas às vezes eu saio, e saio com tudo.  Minha avó costumava dizer que eu ligava a rádio besteirol e não parava. Porque de peixe calado eu virada de repente uma pequena maluquete faladora de bobagens. E com a vovó era uma delícia ser tagarela, era esse o exercício mútuo do riso pela ludicidade expandida. Porque havia confiança e havia amor_  e havia na relação, também, o tempo para o silêncio fundo das águas. E a expansão verdadeira, a meu ver, só pode vir desse permitido mergulho no íntimo silêncio de cada um.
Isso de falar de águas é coisa séria e Bachelard bem o sabe. Está cá na cabeceira A água e os sonhos, essas palavras que circulam do fundo lodoso de um lago doce à superfície de vento e sal do mar de manhã. É assim que somos, rodamos circulando de bolhas e massas de águas quentes e frias, e pedras, plantas, silêncios e sal. A experiência de cada um traz na construída intimidade as imagens que lhe conferem mais sentido ao percurso. Porque as coisas são coisas somente assim: na palavra que tornamos palavra pela boca. 

“Tinha quase trinta anos quando vi o oceano pela primeira vez. Assim, neste livro, falarei mal do mar, falarei dele indiretamente, ouvindo o que dizem os livros dos poetas, falarei dele permanecendo sob a influência dos clichês escolares relativos ao infinito. No tocante ao meu devaneio, não é o infinito que encontro nas águas, mas a profundidade.” _ Gaston Bachelard

A profundidade é o que me prende, e daí essa força, talvez egoísta e com certeza silenciosa, de rodar colada como imã em torno desse fundo centro. Não me é essencial falar essas palavras altas e dispersas. Palavras, assim como coisas, também ocupam e podem ser tralhas. Não quero quartos cheios de tralhas, prefiro os silêncios, pontes, abismos. Mas é daí que surge o salto, o mergulho inverso necessário para que o abismo permaneça abismo. O movimento para fora, esse que expande para fora de si também é gigante porque leva a gente à mergulhos em outros centros e volitações que transcendem e permitem leveza ao caminhar.
Queria encontrar escadas que fizessem parar. E a cada vez que eu subisse você estaria lá assim como estava há três anos atrás. Mas não é assim, as coisas têm sempre seus tempos e se nos encontramos é sempre por cuidadosa disciplina ou sorte. Hoje acordei sentido esse peso vagaroso voltar para dentro e agradeci à força dos saltos recentes que me transformam acrescida de algo sutil e sem nome. Acredito que acrescemos sempre de outros, e esses outros nunca são fáceis porque a diferença não é óbvia, tão pouco macia ou doce. O diferente é quase sempre tormenta ou mesmo antes disso, o próprio essencial da vida inalcançável. Algumas pessoas têm maior facilidade com os outros, eu não, eu tenho saltos antigravitacionais.

“Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.” _Gaston Bachelard

Ana Gabriela baleia


segunda-feira, 22 de janeiro de 2018



Escrever um livro é como sair para passear demoradamente com as ideias. Não se pode apressar o passo: é rodar, bebericar, dançar _palavra precisa respirar.

Ana Gabriela Rebelo _ Wattpad: https://www.wattpad.com/user/AnaGRebelo

sábado, 13 de janeiro de 2018

Notas de Janeiro_ Carioca



Nunca me achei muito carioca, mas confesso que o mermu falado assim com esse “R” marrento é difícil de largar. Afinal quando é mermo que a gente fala este formalíssimo mesmo? Mas isso é coisa que só quando a gente escreve é que vê: o desnível do meRmu como dentes assim empoleirados uns por cima dos outros. A língua é assim mermu: toda desnivelada. É marca, identidade, é a forma que dá o gosto de cada lugar. O carioca mostra os dentes assim: no mermu cadenciado do atraso religioso de cada dia.