sábado, 23 de dezembro de 2017

Febre




“_Hilda, o que é escrever pra você?"

_Não tenho a menor ideia. É muito difícil. Às vezes é uma inspiração súbita que te dá. Mas também é muito difícil. A gente fica, chega a ficar com febre, com febre mesmo.”

                                                      ( Entrevista Hilda Hilst, 2002)


Então alguma coisa da escrita é febre. Alguma coisa da escrita acontece nessa experiência intensa de afetos: do afetar e do deixar afetar-se. O afeto no exercício de desdobrar paisagens é o peso, desequilíbrio que impulsiona o movimento.

Recebo afetos como água que precisa circular. Toda água parada em mim me adoece. A escrita vem nesse fluxo... A escrita movimenta. É como o trânsito de muitas personagens e paisagens febris que compõem todos os lugares. Porque pra que as coisas existam, mesmo as coisas comuns, é preciso que haja uma costura fina de febre, e doença, e estranhezas.

É preciso que haja um mundo fantástico na substância do real. O escritor é aquele que consegue ver esse mundo vivo, esse movimento de febre que transpõe a dureza do real.

Ana G. Rebelo
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sábado, 20 de maio de 2017

Rio de Janeiro, 24 de Outubro de 1991



A carta que escrevo hoje é rápida. Não tenho muito o que contar, só saudade. Saudade de parar com você e não precisar falar nada. Por aqui todo mundo fala muito. É sempre uma dor de cabeça, alguém novo que nasceu, um primo sei lá de quem que anda mudado e aí incomoda todo mundo. Não sei porque se incomodam tanto. Acho que essa coisa de não ser mais quem a gente era incomoda os outros que não são a gente.
    Tem um tempo que não escuto mais música de manhã. Lembra do Cartola? Pois é, Cartola continua sendo manhã, café e saudade de madrugada. Mas já faz uns três dias ou um mês que não escuto mais Cartola de manhã. Aquele disco que você mandou ainda não chegou, mas também ainda não comprei a vitrola. Até fui à feira, mas acabei me perdendo. Tem uma moça que vende cartas na beira da rua da relação, cartas e fotografias.
    Lembra aquele dia que te encontrei no ponto? Tava tarde, né? Já tava tarde quando a gente chegou, e o ônibus ainda demorou bem mais umas duas horas, ou foi uma..? Não sei, esse troço de tempo é estranho mesmo. As horas contadas eu não sei. As horas sentidas sei menos ainda. Porque parece que não foi nada, parece que foi só estar ali com você. Sem tempo, sem hora, sem nada disso que vai cortando a gente e que demora.
    Não sinto demora se te escrevo, sinto demora de esperar te ler. Aquele dia do ponto eu soube da demora quando cheguei em casa e o dia estava claro. Sabe que naquele dia mesmo o primo ligou? Achei estranho. Não sabia seu sobrenome, nem sei... Ele é mesmo primo de quem? Foi bondoso ao telefone. Voz bondosa de igreja, sabe? Queria almoçar e saber como estava a família. Fiquei confuso, família de quem?
Olha, achei uma coisa que você vai gostar. Uma vez por mês, o porteiro aqui do prédio desce às quatro da manhã, todo arrumado. Camisa bem passada, cabelo lavado, sapato de bico. No bolso da frente da camisa ele leva um papel dobrado em vinte partes. Parece um pequeno pacote. Sei das vinte partes porque eu mesmo contei algumas vezes.
Ontem foi o dia de descer e, como de costume, foram bem uns cinquenta minutos sentado no banco da frente do prédio, revirando o papel nas mãos. Ontem o papel caiu. Descuido... Antes de recolocar o papel no bolso, em um pequeno desvio, o papel caiu. Ele nem viu... Mas eu achei, achei o papel! Tem um desenho nele, um desenho de um homem e um cachorro. Recontei, ele é dobrado vinte vezes. Não sei do que se trata, sei que vai gostar.
Um abraço,

Lavínia”

A. Gabriela 

quarta-feira, 22 de março de 2017

O táxi de Hitchcock



O amor é uma batida entre dois táxis.
Como se, em um dia tranquilo, Florence saísse para comprar leite e de súbito percebesse a impossibilidade absoluta de, naquele dia, chegar à mercearia. Florence não sabe explicar o porquê exato deste acontecimento, alguma coisa simplesmente torna diferente a rotina semanal de calçar os sapatos, ajeitar o cabelo e sair para comprar leite.
Uma batida é a quebra de rotina que leva a retenção de trânsito, desvio de percurso, susto e quiçá a necessidade de acionar uma ambulância. Florence nunca andou de ambulância, tem medo de quebrar uma perna, cortar a unha, entrar em coma ou sofrer escoriações que lhe marquem a pele. Certamente andar de ambulância não está entre os sonhos mais comuns dos adeptos aos táxis, ou da maioria dos adultos. As crianças, ao contrário, gostam. É incrível como um carro sozinho pode fazer tanto barulho e acender luzes e repetir infindavelmente aquele ioiô sonoro comprido que vai se alastrando como um fio invisível que se desdobra e aumenta a cidade. A criança e o louco gostam da ambulância, querem entrar nela para tocar o alarme.
O amor é a batida entre dois táxis.
Imaginem que um dia, durante a madrugada, dois carros colidem bem embaixo da janela do quarto de dormir, e Florence acorda, olha em torno, vai até a janela e sem pensar desce pelas escadas de incêndio até a rua sem calçar os sapatos. É isso.
Não sei até que ponto os planos de enamoramento destroem a batida. Entendendo que o choque entre taxis é imprevisto, sabemos que seguir à risca conforme o plano destrói o amor, mas não sabemos ainda a dimensão dessa destruição. Ter o cuidado de nunca esquecer de calçar os sapatos, não torna Florence imune ao esquecimento súbito de seus pés; porém, dependendo da seriedade com que ela leva essa precaução, a simples afirmação diária de fechar zíperes pode ser uma mina estrutural nas fundações do amor.
O amor é a batida entre dois táxis.

Não sei convencionar quem leva quem, ou o quê. Numa cena de Hitchcock seria suspense, uma brecha de silêncio, uns olhos percebidos pelo retrovisor. Talvez o motorista não saiba o caminho, talvez chova, ou existam animais fora de seu ciclo natural que durante o mais normal dos dias colidem junto ao para brisas do carro, entram pelas janelas laterais e façam Florence pensar que realmente sair de sapatos nos pés nunca fez mesmo o menor sentido.

Ana Gabriela Rebelo

 https://www.paisagenspossiveis.com/22-metros  

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

NEVE NA CALÇADA


Havia neve na calçada, neve manchada de sangue. Largas gotas de sangue, marcas antigas no sangue fresco. A neve sempre subindo pela calçada e tampando os letreiros, os muros, as saídas de ar quente.
            Um homem doente gostava de se deitar por ali. Seus olhos estavam cegos, as mãos calejadas e o peito em aflição. Não comia bem, se alimentava de restos. Guardava restos tão bem quanto os sabia regurgitar para depois engolir novamente. Sufocava. Remoía restos esquecidos a ninguém. Se mantinha daquilo que ninguém queria.
            Todos os dias, manhã ou noite, era tempo de deixar palavras esquecidas a ninguém. Lembranças duras do dia, mágoas, coragens repentinas, vontades súbitas que aparecem faladas na boca quando se está caminhando sozinho. Palavras esquecidas do dia, palavras que precisam ser esquecidas para que se possa sorrir à mesa durante as refeições. O homem doente recolhia essas palavras. Vivia delas, pegava cada uma dessas inescrutáveis palavras sussurradas pelos cantos das bocas e com elas enrolava suas feridas. Cobria seus machucados como quem enrola uma gaze na carne aberta. Com cuidado, com minúcia, com a perícia cultivada pelos anos sem ninguém. As marcas de seu corpo na neve já não faziam diferença. Só fediam como um desagradável trecho na cidade por onde nos habituamos a passar de vidros fechados.
 Uma mulher de perfume caro passa todas as noites vomitando seus restos. O medo de ser violentada, a lembrança quase que palpável e gorda de quando foi violentada, a raiva que lhe fazia ter pesadelos recorrentes onde ela era uma assassina capadora de homens de merda. O pesadelo sempre começava do mesmo jeito: ela estava nua escolhendo um vestido em frente a um grande espelho, quando sentia cheiro de merda. Percebia, então, que não estava sozinha. Pelo espelho via um homem enorme que a observava enquanto se masturbava com as mãos ensebadas. Nojento gigante de olhos verdes. Sim, o homem tinha olhos verdes e recebia muitas cartas de mulheres apaixonadas que queriam se casar com ele. Elas não viam a merda, não sentiam o cheiro podre que causava ânsia e fazia curvar as linhas do rosto. Nessa hora ela costumava se lembrar de que estava sonhando e metia o dedo na boceta. Isso fazia o homem parar por um instante espantado com a audácia da mulher em querer mexer no próprio corpo. Ela se tocava e gostava disso, gostava de seu corpo, de sua nudez e de poder estar como bem quisesse. Aquele animal arfante não era bem-querido ali. Não por ela que sabia sentir o cheiro da merda. De dentro da boceta, a mulher puxava um canivete e, nua, caminhava de cabeça erguida até a criatura de merda e seu pau arrombador. Metia a navalha do canivete bem no escroto, e da pele aberta não saia sangue, saía cocô. Merda líquida, diarreia. Fezes endurecidas caíam em blocos junto com a merda em estado líquido. Não havia nada que salvasse aquilo, nem uma gota de sangue, era tudo um monte de cocô. A mulher sempre acordava suando. Precisava correr para o banheiro e cuspir o gosto ruim que vinha na boca. Cuspia repetidas vezes, tomava banho e passava perfume.
 Junto com as palavras que saíam de sua boca, o perfume caía manchando a calçada coberta de neve. Às vezes passavam-se horas sem que ninguém caminhasse por ali. Desse modo a neve podia fazer uma nova camada, tentar cobrir as gotas de sangue antigas e o homem que se deitava ali doente. Como se fosse possível esconder o sangue. Como se não fosse o próprio sangue passado, gerador do futuro. Camada após camada, o homem é recolhido na terra. Tudo isso que queria se apagar vive no homem sozinho. No ‘regurgita dor’ de palavras, naquele homem quase cego que está deitado a resistir na neve sem ninguém. Ser ninguém permite que o homem recolha restos. Permite acolher tudo aquilo que é muito difícil de dizer. Camada após camada, havia neve na calçada. Neve machada de sangue.


Ana Gabriela Rebelo