Na última semana eu saí pra passear, tinha um barulho bem
embaixo da janela de casa e fazia tempo que eu não descia. Então foi isso,
calcei uns tênis velhos que ganhei em algum último natal, botei as chaves no
bolso do short e saí pra passear. A mãe sempre saía pra passear, mas no fundo
eu sei que ela não gostava de sair pra passear porque sempre que a mãe saía pra
passear precisava antes passar maquiagem e fazer o cabelo. A mãe tinha as unhas
dos pés pintadas e eu sei que isso devia dar trabalho, então eu sei que essa
coisa toda de sair pra passear carregava uma espécie de tortura implícita nos
fios de cabelo modelados e nos botões de fechar as costas dos vestidos novos. Vestidos
de passear, a mãe comprava vestidos de passear.
Na última semana eu saí de casa.
Desci as escadas porque o elevador poderia pifar e eu nunca que fiquei presa em
elevador e só de pensar que um dia eu poderia ficar presa em elevador isso me
dá um nervoso de querer me matar. Então eu desci mesmo a pé com aqueles tênis
de corrida velhos que você me deu em algum dia desses de natal. Tinha muito
tempo que eu não via ninguém, o céu tinha nublado e você estava lá na areia com
os olhos fechados em cima de uma canga colorida de vermelho. Eu cheguei perto
com a chave chacoalhando no bolso do short e você se assustou, perguntou se eu
queria sentar. Eu te olhei e bem senti que queria, mas aí pensei e quando penso
não sei se você tem por hábito me convidar por educação ou se é mesmo por
querer esse modo estranho com que me diz palavras atrapalhadas. Não respondi,
não sei lidar com educação.
De dentro da água uma criança gritava, mas eu
olhei e não se via nada. Talvez já tivesse afundado. Você perguntou se eu
queria alguma coisa pra beber e eu achei estranho porque as pessoas em volta
estavam assustadas e, além da água do mar, não tinha nada ali, nada que se
pudesse beber. Você sorriu. Uma fumaça subia da mata seca no alto da encosta,
alguém botou fogo naquele lado da orla e de longe se escutava, sim, do outro
lado da rua já se escutava, a criança que gritava em algum ponto de dentro da
água. Eu te falei? Eu disse que ela morreu? Você sorriu. O cabelo desgrenhado
em meio a fumaça do cigarro que queimava na sua boca puxando o ar quente entre
as palavras. Você me falou, a criança morreu. Olhei pra baixo e os tênis nos
meus pés já pareciam mais surrados do que dez minutos atrás.
Como foi mesmo? Eu já não lembro como foi que
a gente se conheceu, lembro que tava escuro e tinham uns quinhentos discos pesando
na prateleira por cima das nossas cabeças e que estranho que eles não caíram
antes d’eu sair. Antes d’eu sair você botou um terno e eu achei que
fosse especial por isso tentei falar alguma coisa que fosse também especial,
mas sempre qu’eu acho que é especial fica difícil de falar porque aí eu penso
muito e aí não dá. Liguei pra sua casa ontem de impulso, mas ninguém atendeu.
Deixei um recado gravado na sua secretária eletrônica, mas esqueci que você não
tem secretária eletrônica, então me perdoa, perdoa-me, doa-me, Donana. Eu ando
esquecendo assim das coisas desde qu’eu nasci. Na última semana eu saí pra passear,
mas esqueci qu’eu nunca tive vestidos de passear e que às ruas hoje não se sai
mais ninguém. Uma mulher gritou da varanda alguma coisa qualquer enquanto o
fogo subia no alto da encosta e você sorria de cima da sua canga vermelha estendida
na areia. Você se esquece, você se esqueceu também, mas tá tudo bem. Eu só
liguei pra dizer que naquele dia, em que uma criança gritava de dentro do mar, você
me perguntou se eu queria sentar e eu queria. Talvez você não consiga me ligar
de volta, meu telefone mudou. Estou em casa, estou bem, espero que esteja bem
também.
Ana Gabriela Rebelo
@Ana.Cravo.Ana.Canela
@Ana.Cravo.Ana.Canela