sexta-feira, 20 de março de 2020

Vestidos de passear_ espero que esteja bem




Na última semana eu saí pra passear, tinha um barulho bem embaixo da janela de casa e fazia tempo que eu não descia. Então foi isso, calcei uns tênis velhos que ganhei em algum último natal, botei as chaves no bolso do short e saí pra passear. A mãe sempre saía pra passear, mas no fundo eu sei que ela não gostava de sair pra passear porque sempre que a mãe saía pra passear precisava antes passar maquiagem e fazer o cabelo. A mãe tinha as unhas dos pés pintadas e eu sei que isso devia dar trabalho, então eu sei que essa coisa toda de sair pra passear carregava uma espécie de tortura implícita nos fios de cabelo modelados e nos botões de fechar as costas dos vestidos novos. Vestidos de passear, a mãe comprava vestidos de passear.

Na última semana eu saí de casa. Desci as escadas porque o elevador poderia pifar e eu nunca que fiquei presa em elevador e só de pensar que um dia eu poderia ficar presa em elevador isso me dá um nervoso de querer me matar. Então eu desci mesmo a pé com aqueles tênis de corrida velhos que você me deu em algum dia desses de natal. Tinha muito tempo que eu não via ninguém, o céu tinha nublado e você estava lá na areia com os olhos fechados em cima de uma canga colorida de vermelho. Eu cheguei perto com a chave chacoalhando no bolso do short e você se assustou, perguntou se eu queria sentar. Eu te olhei e bem senti que queria, mas aí pensei e quando penso não sei se você tem por hábito me convidar por educação ou se é mesmo por querer esse modo estranho com que me diz palavras atrapalhadas. Não respondi, não sei lidar com educação.
 De dentro da água uma criança gritava, mas eu olhei e não se via nada. Talvez já tivesse afundado. Você perguntou se eu queria alguma coisa pra beber e eu achei estranho porque as pessoas em volta estavam assustadas e, além da água do mar, não tinha nada ali, nada que se pudesse beber. Você sorriu. Uma fumaça subia da mata seca no alto da encosta, alguém botou fogo naquele lado da orla e de longe se escutava, sim, do outro lado da rua já se escutava, a criança que gritava em algum ponto de dentro da água. Eu te falei? Eu disse que ela morreu? Você sorriu. O cabelo desgrenhado em meio a fumaça do cigarro que queimava na sua boca puxando o ar quente entre as palavras. Você me falou, a criança morreu. Olhei pra baixo e os tênis nos meus pés já pareciam mais surrados do que dez minutos atrás.

Como foi mesmo? Eu já não lembro como foi que a gente se conheceu, lembro que tava escuro e tinham uns quinhentos discos pesando na prateleira por cima das nossas cabeças e que estranho que eles não caíram antes d’eu sair. Antes d’eu sair você botou um terno e eu achei que fosse especial por isso tentei falar alguma coisa que fosse também especial, mas sempre qu’eu acho que é especial fica difícil de falar porque aí eu penso muito e aí não dá. Liguei pra sua casa ontem de impulso, mas ninguém atendeu. Deixei um recado gravado na sua secretária eletrônica, mas esqueci que você não tem secretária eletrônica, então me perdoa, perdoa-me, doa-me, Donana. Eu ando esquecendo assim das coisas desde qu’eu nasci. Na última semana eu saí pra passear, mas esqueci qu’eu nunca tive vestidos de passear e que às ruas hoje não se sai mais ninguém. Uma mulher gritou da varanda alguma coisa qualquer enquanto o fogo subia no alto da encosta e você sorria de cima da sua canga vermelha estendida na areia. Você se esquece, você se esqueceu também, mas tá tudo bem. Eu só liguei pra dizer que naquele dia, em que uma criança gritava de dentro do mar, você me perguntou se eu queria sentar e eu queria. Talvez você não consiga me ligar de volta, meu telefone mudou. Estou em casa, estou bem, espero que esteja bem também.

Ana Gabriela Rebelo

@Ana.Cravo.Ana.Canela