sábado, 17 de dezembro de 2016
domingo, 27 de novembro de 2016
Encontros nos telhados
Uma
pessoa, sem sexo definido, acorda de repente, levanta enrolada no edredom e
caminha até a porta do quarto aonde dorme. Pendurado na maçaneta, um bilhete
diz: Me encontre no telhado às três e quinze da manhã. Olha em volta, ninguém.
Olha seu relógio de pulso: três horas.
Pé
após pé volta pela penumbra à beirada da cama. Se senta. Sente que no papel há
um leve perfume de nozes. Começa a pensar que algo estranho está acontecendo
ali. Nunca havia dormido de relógio, também nunca visitara o telhado de sua própria
casa. Na verdade, não fazia ideia de como chegar nele, e lhe veio à cabeça que
aquilo era um absurdo: não conhecer o telhado da própria casa!? Isso, de fato,
pode significar muita coisa. Pensou em tantos dias de chuva e de sol em que o
telhado lhe fora fiel. Pensou que, olhando de longe, ele era até bem bonito.
Mas... e de perto? O que aquelas velhas telhas, ou madeiras, ou seja lá o que
for, poderiam lhe dizer?
Leu o bilhete novamente: “me encontre no
telhado às três e quinze da manhã.” A pessoa então começou a ficar irritada com
o fato de estar dormindo mal há duas semanas! Maldita insônia! Já eram quase
três e quinze e ela estava ali acordada por nada, pensando no telhado, pensando
em bobagens que talvez nem existissem! Afinal, quem são esses desocupados que
deixam bilhetes pelos cantos, marcando encontros pelos telhados? Ponderou, riu
um pouco de alguma coisa, abriu a gaveta, pegou um calmante e às três e quinze
da manhã dormiu.
Ana G. R.
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
Cinza Tempestade
Os balões eram todos tão coloridos!
Todos tão vivos!
─Quero
o cinza, papai!
─Minha
princesa... cinza é tão... tão...
─BUUUMMM!
─Bum?
Cinza é tão sem graça, filha... Tão sem vida! Escolhe o cor de rosa, o amarelo
sol, o azul estrela.
─Deixa
eu pensar, papai... _ A menina saltitou
uns passos e depois virou-se decidida em direção ao pai.
─Já
escolhi! Quero o cinza chuva!
O pai ainda relutou, mas a menina
acabou por levar o grande balão cinza. E assim saiu saltitando sua filha: toda
vestida de verde, óculos coloridos, a boca suja de sorvete e um grande balão
cinza sobre a cabeça. Olhando assim, a menina parecia um grilinho que sai para
brincar no auge das cores: depois de um banho de tempestade.
Ana Canelita Tempestade
quarta-feira, 24 de agosto de 2016
Mar
O mar alcança Paris.
Por dentro do pensamento um sol de Vera aquece a pele e as
palavras do homem que sonha. Na via estreita que leva água ao mundo real, uma
vala se abre junto da terra. Um buraco de minhoca fundo ladeado por lama doce.
O buraco vala de desejos e sonhos desemboca no mundo mar.
Recostado com a cabeça na pedra, o homem sonha. Abre caminho
para a via do desejo passar. É preciso passar, é preciso abrir caminho e chegar
até o mar.
domingo, 19 de junho de 2016
Sobre partir o mundo_ Carta para Vila
Sabe isso de partir o mundo? Partir de partilha, de partilhar dos mesmos
olhos que veem o mundo. Partir pode ser separação, partida. Separação pode
doer. Separação também pode ser junção, quando separar é manter-se junto com
aquilo que se escolhe querer. Quando você foi embora, foi assim como quando
chegou. Separar de você foi como deixar claro a nossa partilha de ser junto.
Eu fui no teu velório. E chegando lá a primeira pessoa
que procurei foi você mesmo. Não pelo óbvio encontro com o morto, mas pelo
encontro com o íntimo. Quando se chega em uma festa, um jantar ou até mesmo em uma
aula, a primeira coisa que se faz é procurar por alguém com quem nos sintamos
mais à vontade. Aquela pessoa que realmente se espera, que faz sentido e
alegria de encontrar e contar coisas sobre nada. Contar coisas sobre nada não é
pra qualquer um. Tem que se ter partilha, olho, memória junta, piada junto...
Lembro de uma das suas primeiras ligações pra minha casa.
Sim, nós éramos adolescentes e ainda ligávamos pra casa um do outro, e
conhecíamos as vozes dos pais e irmãs um do outro. Nessa lembrança meu pai
atende teu telefonema. E posso escutar agora o jeito com que você fala ao
telefone: rindo, sem jeito e ao mesmo tempo espalhafatoso e febril. Você sempre
foi febril. Olha, as ideias que trocava com meu pai sempre foram incríveis e
suponho que tenha começado aí, nesse telefonema. Eu estava no banho e escutei
meu pai rindo na sala. Alto, alegre, cheio de farfalhos ele me gritou sonoro:
“_Filha! Telefone pra você, é o Astro Magnésio!” Saí do quarto e peguei o telefone.
Do outro lado, em um bairro vizinho você também ria. Ria muito e exaltava seu novo
nome: Astro Magnésio! Muito bom, genial! Pra melhorar, somente o acréscimo do
“vulgo Mg”.
Aqui no meu telefone
você ainda está “Vila”. E Vila ninguém entende. Também não é pra ninguém
entender, só eu te chamava assim. Muito cedo achei que esse nome soava bem, e
era uma romântica combinação sonora-gráfica-afetiva de Velasquez com Villa
Lobos. O afeto é único, é de se esperar que ninguém mais entenda. É mais
incrível ainda que ninguém mais entenda.
Ontem sonhei com você. Você aparecia novo, um menino. Eu
te abraçava.
Sempre te abraço nos sonhos. Uma vez sonhei
que estava num ônibus e te via pela janela. Você estava na varanda de uma casa,
a casa estava em festa. O ônibus seguia viagem enquanto você caminhava para
dentro da casa. Eu pulava do ônibus. Pulava mesmo, da janela. E saia correndo
pra te encontrar. É sempre assim, desde que você foi embora eu corro pra te
abraçar.
Sabe solidão? Tem solidão e solidão. Tem solidão rasa e
comum que é achar que se está só por estar sem falar com ninguém durante uma
tarde. Tem solidão que é crua no corpo, solidão de não ser olhado, tocado,
ouvido, acarinhado na pele. Tem solidão que é boa. De espaço, de calmaria, de
café longo e pensamento de nuvem.
A solidão que senti
quando você foi embora não era nenhuma dessas, era solidão de mundo. Como se a
partilha de mundo com você fosse tão rara que, a partir dessa separação eu
precisasse duvidar sobre tudo aquilo que acreditava ser real. A partilha com
você legitimava o mundo que faz mais sentido escolher para mim.
E isso faz sentido? Não
sei, não sei exatamente o sentido que isso faz. O que sei é que não acredito
que exista um mundo assim tão acreditável. Sei que desconfio desse mundo
comprovável e me sinto mais atraída por um mundo provável. Sei que as febres
são indicadores de infecções no corpo e isso não diz quase nada. Ainda não sei do
corpo mais do que aquilo que partilho corpo. E a partilha é recorte. Partilha é
sempre de olhos, de parceria, de cheiro, de unha, de nome, de cor...
Partir nesse sentido é
partilha.
Partilha nunca é de
todo mundo.
Ana Gabriela e Anarquia no coração
sexta-feira, 27 de maio de 2016
Mais de 100
O tempo, neste
momento, é para falar de Hilda Hilst, que não queria ser bailarina. Que queria
escrever, e que escreveu intensamente. O Koisa, A Obscena Senhora D, Contos D’escárnio
e tudo mais que lhe disseram ser muito difícil de ler. Literatura não é fácil.
Literatura não é didática, é melhor.
O tempo é para falar de Cecília
Meirelles e a delicadeza de se fazer pensar sobre os cavalos da inconfidência.
O tempo é emergente.
Mais de cem.
Muito mais de cem.
Urgente.
O tempo é para falar de Nise da
Silveira e o fim da lobotomia. O tempo é para livre circulação de gatos nas
salas. Sem constrangimentos, sem abusos, sem sussurros, sem fiu fiu.
O tempo é para falar de Karen
Horney e a psicologia feminista. O que é ter útero?
Ter útero,
ser útero.
Espaço sagrado, lugar de criação.
O tempo é para falar da
patologização do útero e a potência de mulheres que param máquinas de produção
em massa.
O tempo é para viver a beleza e a
força da minha avó.
O tempo é das guerrilheiras do
Araguaia, das rendeiras do São Francisco, das Marias Brasilianas, e das
afrografiteiras.
O tempo é de Clara Zetkin!
Professora, jornalista, socialista, criadora e redatora chefe, em 1892, do
jornal “A Igualdade”
O tempo é da líder quilombola
Teresa de Benguela.
O tempo é de Viviany Beleboni
Iara Iavelberg
Malala Yousafzai
Ieda Seixas
Dilma Rousseff
Camille Claudel
Cassia Eller
Laerte Coutinho
Antonieta de Barros
Frida Kahlo, Pilar del Río, Anne
Fisher, Nina Simone, Hannah Arendt e Leila Diniz.
O tempo, já sem tempo, é Simone de
Beauvoir e ainda o segundo sexo, que se pergunta estarrecido: “_ onde estarão o
primeiro e o terceiro!?”
O tempo não são 30,
são mais de 100.
Muito mais de 100 mulheres!
Porque 30 se fizeram repetir na
dor, e mais de 100 fazem questão de luta.
Para não se repetir.
Porque é preciso mais que resistir.
Porque mais de 100, muito mais de
100...
Se fazem existir.
Ana Gabriela Lúcia Joaquina Laura
Fátima Beatriz...
sábado, 19 de março de 2016
Xixi sentado_ Contos de verão
Escrevo.
Escrevo, durmo,
espero. Procuro um jeito de me levantar sem acordar do sonho.
O dia começa em
algum lugar do meu relógio. Eu não quero saber. Não sei que horas são. Eu só
escrevo.
Tarde da noite para
o senhor que assiste novelas. A última novela é às 21h. A mulher pobre e bonita
se apaixona por um homem rico e bondoso que se casa com uma mulher rica e
malvada. No intervalo o senhor se levanta para fazer xixi. Sentado na privada
ele reflete sobre um antigo amor. As contas de gás e água, a obra por terminar
no corredor, o desejo, velozmente reprimido, de beijar um outro homem na fila
do ponto de ônibus.
Homem não faz xixi
sentado.
Homem não dá o
rabo.
Mas homem também
não vê novela,....
_"então
foda-se! Faço xixi sentado e vejo a merda que eu quiser!"
Às
dez da noite, o senhor vizinho do prédio ao lado dorme. Na frente da TV,
esticado e mole, como um boneco de pano frouxo numa tarde de calor e sofá
bagunçando a sala.
O que uma sala tem?
O que compõe uma sala? No verão a sala é composta de calor. Sofás cobertos de
um fino lençol amenizam o desconforto causado pela sensação de suor em demasia
no corpo quente. Brinquedos se acumulam docemente pelos cantos. Na casa moram
crianças. Um coelho azul, uma chaleirinha de borracha, umas pedras verdes
turquesa. O som do ventilador é contínuo e forma uma teia estática sobre
o tempo. O trânsito entre a sala e a geladeira marca um percurso contínuo pelo
mesmo ladrilho quebrado. A geladeira está cheia.
Toc, toc, toc,
toc-tlac!
Toc, toc, toc,
geladeira.
A porta da
geladeira abre. Frescor na cara. Na cara mesmo, porque rosto é coisa de moça.
Cara é de cavalo, de homem, de palhaço, de pau. Não sabia bem o que cairia
melhor naquele momento. Talvez nenhum desses. Talvez tivesse cara de saco,
talvez estivesse de saco cheio pelo calor daquele verão dos infernos! Nunca se
acostumara com aquilo. Nunca se sentia tão desalmado como no verão. Não desalmado
de desumano, mas desalmado de sem alma mesmo, como se tivessem lhe amputado o
espírito como a um órgão.
A geladeira. O que
vim pegar na geladeira? Não lembro.... Deixa chegar mais perto e fechar os
olhos e sentir a pele querendo resfriar. Que delícia. Acho que aqui deve ser o
melhor lugar do mundo. Acho que as pessoas deveriam viver assim. Deveríamos
instituir um estado de pessoas que seriam infinitamente mais interessantes e
frescas. Pessoas que se declarassem odiosamente contra o calor doentio e marcassem
encontros na sessão de iogurtes do mercado. Para os carnívoros poderiam haver
belas histórias de amor nos frigoríficos de açougue.
Pão, couve,
bananas, chocolates, salsichas, biscoitos...
Um copo de água e
um pacote de biscoitos frio. Tudo é melhor frio. Voltou à sala. Iria ajeitar o
fino lençol sobre o sofá amassado, deitar o corpo torto novamente, apoiar o
pacote de biscoitos na barriga e comer aqueles farelos até começar a ressonar.
Não acredito que
pudesse não sonhar. Não acredito também que um dia o calor vai passar. Sei
racionalmente que o verão são quatro meses, sei também que da sala a geladeira
são sete passos e um ladrilho quebrado. Não acredito que dias de sonhos
ressonados e novelas requentadas sejam algo para cedo mudar.
Ana Gabriela Rebelo
Ana Gabriela Rebelo
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
Histórias de inverno_ A casa de João
Rio
de Janeiro, 26 de Julho de 2015
A história começa em uma tarde de inverno.
Antes dos cavalos dormirem, dormem os homens. E os homens, assim como os
cavalos, sonham. Sonhara que ardia em febre. Já não se sustentava de saudade.
Já não dormia mais, dia e noite sonhava. Resolveu, então, escrever uma carta.
Uma longa carta contando de seus dias na fazenda. Ali tudo era molhado. A terra
molhada, o capim úmido do sereno pela manhã, as pedras molhadas da chuva do
meio da tarde. As pedras guardam a água que vem do céu.
Na fazenda faltava papel pautado. Papel
branco liso também não tinha. Então João escreveu em uma toalha de mesa azul
clara que ficava guardada no armário em frente à cristaleira. Sua superfície de
tecido roto revelava o tempo longo e distante de dias e noites e cafés e madrugadas.
A João, as madrugadas sempre pareceram um tempo fora do tempo. Como se entrando
pela madrugada fosse possível alargar o tempo. Como se tudo fosse mais comprido
no vagar do silêncio daqueles que dormem. Adentrar a madrugada é como prolongar
o tempo. A sensação que tinha era como se, mesmo quando morresse, permaneceriam
as madrugadas.
João tinha saudades de sei lá o quê. E esse
sentimento não era bom nem ruim, era isso, sempre fora isso. João sentia
saudades desde sempre. Lembrou-se de um dia quando, ainda pequeno na casa dos
pais, vagava pelo tapete da sala enquanto muitas pessoas chegavam. Era natal.
João tinha quatro tios de parte de mãe, e mais cinco de parte de pai. Todos
tinham seus filhos que chegavam e, um a um, iam pedir a benção às avós e bisas.
A família era numerosa. A casa era grande. Desde que ele nascera, o Natal
acontecia, ano após ano, ali.
Perto da árvore se acumulavam presentes de
quase todos os tamanhos. Afinal, que árvore poderia comportar presentes de
todos os tamanhos? Um dia antes do Natal, João gostava de sentar ao lado da
árvore e ficar olhando os enfeites coloridos. Cada superfície reluzia e
refletia sua imagem para dentro daquela sala paralela. Na sala refletida era
tudo silencioso, e as coisas mudavam de tamanho do gigante desforme ao distante
infinito.
Cada palavra de João era pequena. Cada
palavra levava um sopro. Saia fácil, fluía. E eram muitas palavras. E,
escrevendo naquela enorme toalha velha, poderia demorar-se horas, poderia
demorar-se dias. Ao longo da noite, iam acumulando-se mais e mais pessoas para
o Natal. A sala paralela ia, aos poucos, afundando em um mar de pessoas
disformes e falantes. João tinha saudade e, talvez por isso, não falasse muito.
Sua tia dizia que era timidez. Timidez é a falta de vontade de falar?
Acreditava que era a falta de ter o que dizer, dizer aquilo que se pode falar,
aquilo que é conversável no natal. Porque a tia Adelina conhecia João no natal.
Conhecer alguém no natal deve ser rápido e conclusivo. Deve ser preciso. Não
existe tempo no natal, nem tristeza, nem calcinha furada e palavras de baixo calão. Existe peru assado e farofa de miúdos. A roupa deve estar limpa e
passada, de preferência, nova e elegante como apresentadores de telejornal. No
natal, João usava sapatos de verniz e gravatinhas coloridas. Suas irmãs
enfeitavam-se com enormes laçarotes na cabeça e broches de pérolas e
porcelanas. Eram meninas lindas. Ele era tímido. Muito bonito, não existia
ninguém feio na família. Mas era tímido. A timidez vencia a bonitez.
Estava sozinho na fazenda havia quase um
mês. E ali não era nada. Ali, tomava café pela manhã e fazia longas caminhadas.
O fogo que aquecia a casa era o mesmo que fervia a sopa. A terra tinha barulho
suave e não discordava do fogo. Ali João podia ser saudade. Não saudade de
alguém, não saudade do natal ou da primavera passada. João não sentia falta de nada,
e era isso mesmo que era. Durante algum tempo, quando pequeno, acreditara que a
timidez da tia Adelina fosse isso. Esse sentimento de ser sempre distante das
coisas e, por esse motivo, ser aquilo mesmo de mais próximo que se pode ser
delas. João pensava sobre as coisas e sobre a sala paralela das coisas. O
tapete apinhado de crianças e o corredor vazio davam nome à mesma casa, ao
mesmo natal. João não tinha saudade, João era saudade. Ser saudade era como ter
a capacidade de nunca se deixar nomear pela bonitez ou timidez das coisas. Ser
saudade era simplesmente poder estar próximo às indefiníveis coisas. Era
fazer-se presente na sala paralela em um dia de caloroso almoço de família na
sala principal da mesma casa. E isso não era bom, nem era ruim. Só era assim
que era.
Ana Gabriela Rebelo
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