quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

NEVE NA CALÇADA


Havia neve na calçada, neve manchada de sangue. Largas gotas de sangue, marcas antigas no sangue fresco. A neve sempre subindo pela calçada e tampando os letreiros, os muros, as saídas de ar quente.
            Um homem doente gostava de se deitar por ali. Seus olhos estavam cegos, as mãos calejadas e o peito em aflição. Não comia bem, se alimentava de restos. Guardava restos tão bem quanto os sabia regurgitar para depois engolir novamente. Sufocava. Remoía restos esquecidos a ninguém. Se mantinha daquilo que ninguém queria.
            Todos os dias, manhã ou noite, era tempo de deixar palavras esquecidas a ninguém. Lembranças duras do dia, mágoas, coragens repentinas, vontades súbitas que aparecem faladas na boca quando se está caminhando sozinho. Palavras esquecidas do dia, palavras que precisam ser esquecidas para que se possa sorrir à mesa durante as refeições. O homem doente recolhia essas palavras. Vivia delas, pegava cada uma dessas inescrutáveis palavras sussurradas pelos cantos das bocas e com elas enrolava suas feridas. Cobria seus machucados como quem enrola uma gaze na carne aberta. Com cuidado, com minúcia, com a perícia cultivada pelos anos sem ninguém. As marcas de seu corpo na neve já não faziam diferença. Só fediam como um desagradável trecho na cidade por onde nos habituamos a passar de vidros fechados.
 Uma mulher de perfume caro passa todas as noites vomitando seus restos. O medo de ser violentada, a lembrança quase que palpável e gorda de quando foi violentada, a raiva que lhe fazia ter pesadelos recorrentes onde ela era uma assassina capadora de homens de merda. O pesadelo sempre começava do mesmo jeito: ela estava nua escolhendo um vestido em frente a um grande espelho, quando sentia cheiro de merda. Percebia, então, que não estava sozinha. Pelo espelho via um homem enorme que a observava enquanto se masturbava com as mãos ensebadas. Nojento gigante de olhos verdes. Sim, o homem tinha olhos verdes e recebia muitas cartas de mulheres apaixonadas que queriam se casar com ele. Elas não viam a merda, não sentiam o cheiro podre que causava ânsia e fazia curvar as linhas do rosto. Nessa hora ela costumava se lembrar de que estava sonhando e metia o dedo na boceta. Isso fazia o homem parar por um instante espantado com a audácia da mulher em querer mexer no próprio corpo. Ela se tocava e gostava disso, gostava de seu corpo, de sua nudez e de poder estar como bem quisesse. Aquele animal arfante não era bem-querido ali. Não por ela que sabia sentir o cheiro da merda. De dentro da boceta, a mulher puxava um canivete e, nua, caminhava de cabeça erguida até a criatura de merda e seu pau arrombador. Metia a navalha do canivete bem no escroto, e da pele aberta não saia sangue, saía cocô. Merda líquida, diarreia. Fezes endurecidas caíam em blocos junto com a merda em estado líquido. Não havia nada que salvasse aquilo, nem uma gota de sangue, era tudo um monte de cocô. A mulher sempre acordava suando. Precisava correr para o banheiro e cuspir o gosto ruim que vinha na boca. Cuspia repetidas vezes, tomava banho e passava perfume.
 Junto com as palavras que saíam de sua boca, o perfume caía manchando a calçada coberta de neve. Às vezes passavam-se horas sem que ninguém caminhasse por ali. Desse modo a neve podia fazer uma nova camada, tentar cobrir as gotas de sangue antigas e o homem que se deitava ali doente. Como se fosse possível esconder o sangue. Como se não fosse o próprio sangue passado, gerador do futuro. Camada após camada, o homem é recolhido na terra. Tudo isso que queria se apagar vive no homem sozinho. No ‘regurgita dor’ de palavras, naquele homem quase cego que está deitado a resistir na neve sem ninguém. Ser ninguém permite que o homem recolha restos. Permite acolher tudo aquilo que é muito difícil de dizer. Camada após camada, havia neve na calçada. Neve machada de sangue.


Ana Gabriela Rebelo