Como se, em
um dia tranquilo, Florence saísse para comprar leite e de súbito percebesse a
impossibilidade absoluta de, naquele dia, chegar à mercearia. Florence não sabe
explicar o porquê exato deste acontecimento, alguma coisa simplesmente torna
diferente a rotina semanal de calçar os sapatos, ajeitar o cabelo e sair para
comprar leite.
Uma batida
é a quebra de rotina que leva a retenção de trânsito, desvio de percurso, susto
e quiçá a necessidade de acionar uma ambulância. Florence nunca andou de
ambulância, tem medo de quebrar uma perna, cortar a unha, entrar em coma ou
sofrer escoriações que lhe marquem a pele. Certamente andar de ambulância não
está entre os sonhos mais comuns dos adeptos aos táxis, ou da maioria dos
adultos. As crianças, ao contrário, gostam. É incrível como um carro sozinho
pode fazer tanto barulho e acender luzes e repetir infindavelmente aquele ioiô
sonoro comprido que vai se alastrando como um fio invisível que se desdobra e
aumenta a cidade. A criança e o louco gostam da ambulância, querem entrar nela
para tocar o alarme.
O amor é a
batida entre dois táxis.
Imaginem
que um dia, durante a madrugada, dois carros colidem bem embaixo da janela do
quarto de dormir, e Florence acorda, olha em torno, vai até a janela e sem
pensar desce pelas escadas de incêndio até a rua sem calçar os sapatos. É isso.
Não sei até
que ponto os planos de enamoramento destroem a batida. Entendendo que o choque
entre taxis é imprevisto, sabemos que seguir à risca conforme o plano destrói o
amor, mas não sabemos ainda a dimensão dessa destruição. Ter o cuidado de nunca
esquecer de calçar os sapatos, não torna Florence imune ao esquecimento súbito
de seus pés; porém, dependendo da seriedade com que ela leva essa precaução, a
simples afirmação diária de fechar zíperes pode ser uma mina estrutural nas
fundações do amor.
O amor é a
batida entre dois táxis.
Não sei
convencionar quem leva quem, ou o quê. Numa cena de Hitchcock seria suspense,
uma brecha de silêncio, uns olhos percebidos pelo retrovisor. Talvez o
motorista não saiba o caminho, talvez chova, ou existam animais fora de seu
ciclo natural que durante o mais normal dos dias colidem junto ao para brisas
do carro, entram pelas janelas laterais e façam Florence pensar que realmente
sair de sapatos nos pés nunca fez mesmo o menor sentido.
Ana Gabriela Rebelo
https://www.paisagenspossiveis.com/22-metros
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