Não gosto de amigo oculto. Quer dizer, não
gosto daqueles amigos ocultos convencionais de presentes pré-determinados e
apáticos. Principalmente quando acontecem no trabalho. Existe alguma coisa mais
formalizada informal que presentes utilitários trocados com uma pessoa com a
qual você nunca chegou, sequer, a trocar palavras? E, depois, ainda é de praxe
aquele meio abracinho, em uma fotografia sem graça de sorrisos amarelos.
Bem, o último ano que passou não foi muito
bom para mim. Uma das coisas, porém, que posso listar no “lado bom da força”
foi que, pela primeira vez em muito tempo, não participei de amigo oculto
nenhum. Isso, com certeza, nos poupa um belo tempo gasto em trabalho não
remunerado. Tem pessoas que gostam, e eu juro que, às vezes, tento entender
como alguém pode gostar de atividade tão impessoal de
pseudo-intimidade-alegre. Às vezes fico
pensando porque não trocamos notas de dinheiro dentro de envelopes coloridos.
Acho que seria mais divertido, ao menos poderíamos colorir os envelopes e,
talvez, escrever neles várias sugestões de presentes os quais você acredita que,
realmente, têm afinidade com aquela pessoa. Daí ela recebe aquilo, vê seu
colorido, seu traço de desenho tosco...
Talvez o papel venha com alguma mancha de gordura que você deixou cair
enquanto desenhava e comia rabanadas na cozinha à noite. E aí você pode até se
desculpar pela mancha, e explicar que estava fazendo rabanadas, e talvez surja
uma boa conversa daí. Uma conversa que não precisa ser alegre, mas que tenha
vontade de conversa. É, às vezes tento
entender e penso mais ou menos por aí: o amigo oculto pode ser bom, mas precisa
ter brechas para o oculto. Se isso não acontece, fica tudo comercial e
obrigatório, e aí realmente é aquele horário político obrigatório que ninguém
quer ver, mas todos fingem que se interessam pra não pegar mal.
A coisa já começa ruim, quando primeiro tem
aquele momento em que você torce para tirar alguém com quem você tenha o mínimo
de proximidade. Ou, ao menos, que não seja aquela pessoa nova que apareceu de
paraquedas na última hora, da qual você não sabe absolutamente nada. E se você
apertou os olhos e pediu com todas as forças para não ser aquela pessoa, você
errou.
_
“Que não seja Zezinho, que não seja... é esse mesmo o nome dele?...”
Pronto! É o Luizinho... Luizinho! É esse o
nome... Sabia que era alguma coisa com “inho”! Bom, agora comece rapidamente a
pensar o que você vai falar sobre ele. Lembra o dia que você esbarrou com ele
no corredor e ele estava... Como ele estava?... De lado! Isso, ele estava meio
de ladinho, passando rápido pelo corredor e aquilo te irritou muito, pois você
estava de TPM naquele dia, e aquela criatura correndo rápido de ladinho te
lembrou uma porra de um siri gigante que atrapalhava teu caminho! Que inferno!
Esse puto de siri! Ótimo, você já tem algo a dizer.
O presente. Bem, “presente” me parece uma palavra
meio equivocada neste caso. Equivocada porque não me parece que tenha a ver com
o ato de presentear alguém. Presentear alguém envolve uma troca íntima.
Acredito com todas as forças que precisamos saber presentear sem que isso
envolva um ato comercial. Presentear não deve, necessariamente, precisar de
dinheiro. Presente é gostoso quando é algo pensado, algo que tenha um pouco de
si e do outro. Não gosto de ter que sair, com pressa e sem vontade, no meio do
horário de almoço, para comprar uma bolsa de couro de determinada marca para o
Zezinho! Ou Luizinho! Whatever! Aliás, eu nem gosto do “fulanoZINHO”. E gosto
menos ainda de fingir que gosto! Nós adultos somos muito ruins com isso.
Fingimos tudo. Fingimos que gostamos quando não gostamos. E também fingimos que
não gostamos quando gostamos. Quando crianças, sentíamos o que sentíamos e
pronto. E aí vamos crescendo e sendo educados a esconder o coração, não tirar
melecas e participar de coisas chatas por mera formalidade. Nos tornamos
adultos carregados de melecas velhas e quinquilharias no coração. Não vou ser
romântica e dizer que gosto de conversar com crianças. Não gosto de conversar
com todas as crianças, tem crianças que são chatas. Tem crianças que só falam
do homem aranha, e ficam gritando, e passam horas fazendo explosões com a boca.
Mas isso não é um problema, elas também não conversam comigo quando me acham
chata. É uma questão de afinidade e sinceridade. Por isso gosto das crianças,
mesmo quando são chatas.
Trabalhei com crianças em vários momentos
da vida. Meu penúltimo emprego era com crianças. Trabalhava em uma equipe de
vários profissionais que faziam atendimentos de natureza psicossocial com
crianças. E foi com essas pessoas que vivi minha mais recente experiência de
amigo oculto. Mas ali era diferente, convivíamos com crianças, poderíamos
brincar, sabíamos brincar! Fiquei animada e logo me inscrevi na ata de reunião
para propor meu fabuloso plano de amigo oculto i-no-va-dor!
_
“Então... vamos presentear nossos amigos com brincadeiras! Cada um propõe uma
brincadeira que acha que tem a ver com seu amigo. Ou também pode ser uma
música, uma performance, uma esquete!”
Bom... As caras não foram muito receptivas,
então eu tentei outra coisa.
_
“Então vamos nos presentear com brinquedos. Não brinquedos caros... porque
atualmente os preços de brinquedos estão absurdos... Podemos escolher
besteiras, brinquedos simples, dessas lojinhas de um e noventa e nove. Que
tal?”
Novamente as carinhas não foram lá muito
boas. Os narizes estavam torcidos e os olhos de pena para mim foram tantos, que
cheguei a pensar que realmente havia algo de errado com a minha pessoa. O
silêncio se demorou por alguns dez segundos, até que alguma boca salivando se
rebelou: _ “Eu quero um cinto bonitoooo! Não sou mais criança.” As outras
boquinhas rapidamente também começaram a salivar com bolsas e cremes, maiôs, sandálias
e maquiagens. Estava decidido, precisávamos de cintos bonitos para combinar com
as calças.
No final dos anos setenta Mafalda pergunta
a su mamá:_”...com quantos anos a gente fica velha?” Su mamá lhe responde que é
tudo uma questão de manter o espírito jovem. O que leva a menina a outra
pergunta:_ “Tudo bem... mas e o espírito... com que idade ele começa a precisar
de maquiagem?”
Ai Mafalda... tantos anos trabalhamos com
estas crianças e nunca, nem sequer em uma única reunião, te convidamos!
Convidamos Sigmund Freud e o senhor Lacan, mas nunca a Mafalda! Gostaria de
saber dos livros de cabeceira do senhor doutor que me trata. Acho que, antes de
nos propormos a cuidar de alguém, deveríamos cuidar melhor da nossa lista de
convidados. _ “Que lista de convidados?” Pergunta o senhor Lacan. Bem, na
verdade, falo de várias listas. A
lista de convidados para as reuniões da ONU, lista de convidados para as
conversas mentais que temos antes de dormir, listas para aniversários,
casamentos, conversas em mesa de bar e camas de motel. Também falo das listas
de convidados para reuniões de família e direção de trabalho. Não falo
“direção” no sentido de cargos profissionais, falo sobre direcionamento de
sentido do que fazemos. Também não falo do “cuidar” só no sentido de tomar
conta ou conduzir um tratamento de saúde. Falo de direção e cuidado como
pensamento, reflexão. Sempre que vamos pensar sobre alguém ou sobre alguma
coisa, ou simplesmente pensar, devemos fazer uma boa lista de convidados que
saibam brincar. Do contrário, podemos estar diante do mais extraordinário
nascimento de estrelas, que não conseguiremos ver nada mais que chuviscos a
perturbarem nossos olhos. Poderemos estar diante de naves extraterrestres
pousando na lua, mensagens em três diferentes línguas, amores capazes de fazer
cantar. Gritarão tristezas e alegrias e todos os tipos de coisas misteriosas e
inexplicáveis, e tudo que teremos ainda serão belos cintos de couro para
combinarem com nossas calças.
O melhor amigo do Calvin é um tigre, o
Haroldo. O melhor amigo do Charlie Brown é um cachorro, o Snoopy. O Linus também é
amigo do Charlie e do Snoopy. Aliás, quem não é amigo do Snoopy? Eu gosto de
todos eles e tenho todos na cabeceira e na bolsa. Gosto de convidá-los para
minha casa. Deixo meus convidados virem como quiserem, de calças, vestidos,
descalços, pintados, com perucas... Não pré-combinamos isso, porque isso não é
o principal. Exceto, é claro, quando é festa do chapéu, do pijama ou da gravata
maluca. Acho mesmo que precisamos falar mais sobre Paty Pimentinha e Mafalda.
Acredito (e isso apazigua meu coração) que, se elas estivessem naquela reunião
de trabalho, teriam topado o tempo de brincadeira. Afinal, trabalhamos duro
e... Estamos fazendo isso e... Quer dizer, pra quê mesmo isso tudo? Uma vez, o
Charlie perguntou pro Linus porque eles precisavam estudar. O Linus disse que
era para que tirassem boas notas. E para que boas notas? Bom, para que
consigamos nos formar e conseguir um emprego que nos pague bem e assim
consigamos matricular nossos filhos em boas escolas para que... Bem, para que
eles tirem boas notas!
Você
pode estar se perguntando se seria mesmo uma boa dar ouvidos a um menino que
casualmente troca ideias com um cobertor azul. Ou talvez se pergunte, por que
questionar tanto um simples amigo oculto? E o que posso lhe dizer é que não
questiono o amigo oculto. O que questiono é o oculto. A falta dele quando
deveria haver, e o pseudo-oculto que se desvela em um acordo coletivo onde
mantemos a mediocridade esvaziada de todo dia. Esvaziada de desejo, de sentido,
de autenticidade. Lembro-me de Antunes Filho e o convido também, junto a Calvin
e companhia, para brincar na nossa festa. Em uma de suas declarações, Antunes
diz:_ “Está tudo se esfarelando. A fé no outro se esfarela. Você não pode
contar com ninguém, você fica cada vez mais solitário e contando com os
eletrodomésticos.” Pois é disso que se trata esse “amigo oculto da depressão”:
a dureza com que levamos tudo só nos permite brincar brincadeiras didáticas que
corroboram com nossas vidas de realidades vazias de sentido, que precisam a
cada fim de ano serem apertadas com belos cintos.
Brincadeiras didáticas são chatas. É quase
como o que acontecia nas antigas aulas de informática das escolas nos anos 90.
Você ia para a aula todo animado, porque sempre no final a professora dava 30
minutos de tempo livre no pc! Tempo livre no pc, que demais! Vamos jogar!
Então, você e sua dupla abriam os jogos que tinham instalados e... eram to-dos
didáticos. Dinossauros são legais quando são dinossauros e não quando ensinam a
gente a resolver funções matemáticas.
O último ano que passou não foi bom para
mim. E isso é algo que eu espero compartilhar com um amigo. E mesmo que ele não
me entenda ou fale merdas e me dê conselhos estúpidos, ou simplesmente não faça
nada além de ser meu amigo, ok. Passaremos madrugadas sozinhos na cozinha
comendo rabanadas. Também encheremos nossas caras quando der na telha, teremos
dores de cabeça, sentiremos raiva e medo e também acharemos estranhas e
desconfortáveis mais da metade das coisas que acontecem no mundo. Os
sorridentes entusiastas de Recursos Humanos que me desculpem, mas é muito solitária
essa vida de polir cintos e dentes. Cansei de falar sobre produção, precisamos
falar sobre Calvin, Mafalda e Snoopy também.
Ana Gabriela lendo Snoopy
Snoopy lê Tino Freitas_ Uniforme_ "Ouviu dizer que era mais seguro andar nas nuvens..." ;)
Maravilhoso!
ResponderExcluir:)
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluircontinue escrevendo, continue escrevendo !
ResponderExcluirOi, quem é? :)
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