sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

A bicicleta ao lado

Hoje é dia de Natal. Natal é 25 mas, se já começaram os preparativos do peru, já tá valendo, certo? Ainda não sei bem falar sobre isso com um só sentido. Acho estranho dizer “natal é amor”, “natal é paz”... Natal é ... família, aniversário de Jesus, ou o que quer que queiramos dizer para sintetizar esta data. O espírito natalino carrega muitos espíritos. São espíritos solidários, beatos, espíritos de gula e de fome. O natal sem fome caminha junto ao “vou ficar bonita na sala”. Consumistas, médiuns, crianças, velhos, ambientalistas, ateus e renas compõem esse fenômeno de espíritos alterados. É no mínimo curioso, para não dizer bizarro, quando Noel, Jesus e a coca cola se fazem presentes em uma mesma embalagem de biscoitos. Não sou radical contra qualquer uma dessas definições bonitas sobre o natal, apenas preciso pensar, pois sinto estranheza e, de fato, não sei.
O que sei é que hoje, dia vinte e quatro de dezembro de 2015, no Rio de Janeiro está fazendo um calor desgramado! Bom, e nesse calor nada melhor que ir para academia! Sim, neste dia de espíritos alterados, resolvi ir à academia e pedalar, talvez também tentando provar que me incluo na lista dos alterados.
Os alterados da academia hoje estavam escassos, o que só faz aumentar o status de estranheza dos espíritos presentes. Bom, não sei bem o porquê, fui na academia. Também não sei bem porque não deveria ter ido.
- Ahhhh, natal é um dia especial!
- Hum, ok. De fato, hoje o funcionamento das academias tem horário especial.
Não gosto de academia. Mesmo quando esqueço disso, minha foto no registro de matrícula sempre aparece no computador a cada entrada para me lembrar. Se acontecesse um concurso, não sei se eu ganharia, mas arrisco dizer que estou entre as dez fotografias mais desanimadas do mundo da história das fotografias de academias.
Uma vez o rapaz da secretaria me perguntou se eu gostava de zumba.
....
Pressionei a digital para passar pela roleta de entrada e lá estava ela: a fotografia finalista, na tela do computador pra todo mundo ver! Olhei para o rapaz e, rindo, apontei ”Olha a minha cara de quem gosta de zumba!” O rapaz não aguentou e cedeu levemente a sua posição profissional, rindo daquela situação junto comigo. É, definitivamente, eu não seria a garota propaganda da academia.  
Diante dessa circunstância pessoal de desgostos, resolvi adotar algumas táticas que me possibilitassem mais prazer naquele espaço. Ficar correndo numa esteira por horas sem chegar a lugar nenhum, enquanto rola a sessão da tarde, não é o meu barato. Resolvi, então, correr na bicicleta. Não que a bicicleta da academia vá me levar a algum lugar.... Mas ali eu poderia... levar livros! Sim, vou me exercitar enquanto leio! Ótimo, fiquei mais alegrinha J
Comecei com Hemingway. Livro de contos, incrível! Um dos últimos que comprei. Consegui pedalar cinquenta minutos sem me sentir um rato all the time. Bacana, boa tática! Reparei que o número de bicicletas é bastante reduzido em relação aos outros aparelhos. As bicicletas são mais simples, não têm muitos botões turbo, adicionais de cargas ou outros recursos mais sofisticados para turbinar no carnaval. Perto de mim ficam mais duas bicicletas, uma na frente e outra ao lado. Estão quase sempre vazias. Reparei também que as pessoas que utilizam as bicicletas costumam ter características peculiares dos frequentadores não beatos de academias. Provavelmente, alguns concorrem comigo no quesito “pior fotografia do mundo”.
Passei agora para Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. Na verdade, estreei hoje Italo Calvino Fitness! E não é verdade que este natal inusitado foi incrível na academia? Sentei no meu cativo aparelho, acomodei minha garrafa de água, toalhinha e mp3. Apoio meu livro no painel a frente e começo a pedalar. Nos fones escuto barulho de chuva. E Ítalo começa a falar sobre leveza.  Sobre a leveza da linguagem, leveza do mundo, sobre experimentar a leveza. O tempo de minha experiência corre mais leve com Calvino. “...se a ideia de um mundo constituído de átomos sem peso nos impressiona é porque temos experiência do peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso.”
As pessoas correm ao meu lado. Escutam algo nos seus fones que eu não sei o que pode ser. Dormem, sonham algo que eu não sei o que é, levantam de suas camas e vão correr e levantar pesos na academia. Ter a experiência do peso das coisas é o que permite apreciar com leveza. Tirando os halteres que ficam na frente do espelho no segundo andar, não sei quais são os pesos de cada um. Sei dos pesos que me atravessam, sei das minhas ladainhas cotidianas, das minhas teimosias e intolerâncias. Sei que, de alguma forma, cada um arranja um jeito de lidar com seus pesos. Talvez por isso eu possa rir da zumba, ou reparar nas bicicletas que não vão a lugar nenhum e chegar a algum lugar com elas. Talvez o meu riso revele um grau de admiração. Não à zumba! Não chegamos a tanto, né? O que admiro é esse lugar que criamos de estratégias de levantamento de pesos. Não gostar de alguma coisa, não precisa ser um discurso de ódio sobre essa coisa. Acredito que a leveza nos indique a possibilidade de manter lugares estranhos, mas não hostis.   
Bom, estava eu na academia. Também estavam Calvino-Fitness, o rapaz da secretaria, um professor sentadinho no tatame olhando seu celular, três pessoas correndo nas esteiras e um professor que corria de um lado ao outro olhando o relógio desesperado para ir para casa comer rabanadas. Ler na academia de ginástica já tinha me dado muitos pensamentos viajantes ali naquela salinha surreal dos adeptos da corrida não-nômade. Mas eis que não satisfeito, o grande capitão planeta dos natais quis me presentear com mais um encontro inusitado. Aos vinte minutos de corrida, pensando se  deveria ou não me sentir culpada pela inquietação do pobre professor aflito, descobri que eu não era tão original assim. Na bicicleta ao lado, um homem, com um livro no seu mais alto padrão estilo-bíblia, não usa fones de ouvido com barulho de chuva. Ele usa tampões. Sim, ele usa tampões de ouvido e carrega um livro maior que o alcorão. Caramba... bolei. Confesso que estendi meu tempo na bicicleta, me retorcendo e tentando descobrir de que se tratava o livro do coleguinha. E, quando descobri, fiquei mais bolada ainda: era um livro sobre disciplina da mente. Olhei de relance sua mochila para saber se havia ali um sabre de luz, não sei em que nível meu espírito se encontra alterado, mas achei verdadeiramente possível que, bem ao meu lado, estivesse um Jedi!
É, não sei como definir o natal. Acho que não existe “o natal”, existe a rabanada, a farofa, o peru. Existe uma expectativa televisiva sobre um ideal de corredores que não suam sobre uma campina verde cheia de coelhinhos. Mas, francamente, nem todos curtem coelhinhos, campinas ou o peru da Fátima Bernardes. Nem todos têm religião ou família, wifi ou fé em alguma coisa. Eu não tenho religião, mas acredito que alguma coisa acontece neste mundo louco de esteiras e perus de dezembro. Alguma coisa que nos demanda um exercício constante de tentar equilibrar pesos. E a leveza é isso, a leveza só é leve no conhecimento da experiência do peso. Se houvesse “o natal”, ele seria, para mim, o período em que nos lembramos da potência da leveza sem a ingenuidade de não acreditar em pesos. Se acreditamos em Papai Noel, morremos de diabetes num caminhão de refrigerantes. Se não acreditamos, morremos de tédio e anabolizantes num campeonato de fisiculturismo. Acho que ler Calvino na academia de ginástica me mostrou um caminho interessante para compreender o sentido desses espíritos alterados. Talvez estejamos buscando a leveza com muita concretude ou talvez estejamos buscando a fada do dente sem dente. Quer dizer, a leveza da fada só pode existir no corpo do dente. E isso não significa que não existam fadas ou que não existam dentes. Significa que é possível passar um dia de natal na academia sem ser um fisiculturista e ainda encontrar um Jedi na bicicleta ao lado.

   
Ana Jedi Gabriela 

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