sábado, 31 de outubro de 2015

Sobre intimidade, tempo presente e roupas no armário_ Carta a Flora, Madonna e Teresa




Rio de Janeiro, 23 de maio de 2015

    Uma manhã de outono com Flora a distância. Distância na proximidade.

    O que torna duas pessoas próximas? O que nos torna mais próximos que a experiência de partilhar inquietações? A inquietação... Turbulência de viagem? Sonhos estranhos? Desconforto na cidade ou sapatos apertados... Inquietação do filme que perdura depois do fim? Inquietação de desejo. Desejo de doce, desejo de fome, desejo de alguém.
    Desejo de fim. Partilha de morrer. Desejo de experiência de viver. Conforto de partilha de silêncio. Conforto de partilhar o imperfeito, a dor, o momento em que se quebra.
    No meu armário tem muitas roupas. A maioria eu não uso. Não uso nunca. E não me desfaço nunca. As roupas que gosto, para mim, são quase como maquiagem. Às vezes já acordamos com olhos pintados e só o que fazemos é passar o lápis na marca.
   A meu ver, maquiar-se é uma experiência, na maior parte das vezes, íntima. É partilhar a marca que anda a te frequentar. As roupas que gosto, aquelas que realmente me confortam, são também aquelas que visto antes mesmo do ato cotidiano do vestir-me. E não são muitas as roupas que visto. De fato meu armário está lotado de peças que nunca me vestem.
    Vou doá-las. Por tudo num saco, uma caixa! Três! Mas então eu pego as peças e, uma a uma, não consigo me desfazer. As roupas que ocupam meu armário asseguram meu futuro. O short jeans nunca usado permanece na gaveta para o dia em que eu talvez mude de ideia e resolva bater perna com ele.
    A camisa de bichinhos, a camisola de seda, as pantufas e a echarpe cinza permanecem assegurando que eu possa mudar no futuro.
    Mas vestir-me com as roupas que eu não quero mais? Vestir-me no presente com as roupas que algum dia eu já quis no passado? Não seria, de alguma forma, assegurar a possibilidade reconfortante de permanecer no passado? A possibilidade apaziguadora de que , na verdade, eu nunca tenha mudado?
    O que nos torna pessoas próximas?

    O que me faz partilhar a marca dos olhos? O que me leva a sempre recortar a echarpe vermelha em meio a confusão do armário abarrotado? O que me leva a recortar as quase-manhãs de outono com Flora, Teresa e Madonna?

Ana Gabriela Rebelo