sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

A bicicleta ao lado

Hoje é dia de Natal. Natal é 25 mas, se já começaram os preparativos do peru, já tá valendo, certo? Ainda não sei bem falar sobre isso com um só sentido. Acho estranho dizer “natal é amor”, “natal é paz”... Natal é ... família, aniversário de Jesus, ou o que quer que queiramos dizer para sintetizar esta data. O espírito natalino carrega muitos espíritos. São espíritos solidários, beatos, espíritos de gula e de fome. O natal sem fome caminha junto ao “vou ficar bonita na sala”. Consumistas, médiuns, crianças, velhos, ambientalistas, ateus e renas compõem esse fenômeno de espíritos alterados. É no mínimo curioso, para não dizer bizarro, quando Noel, Jesus e a coca cola se fazem presentes em uma mesma embalagem de biscoitos. Não sou radical contra qualquer uma dessas definições bonitas sobre o natal, apenas preciso pensar, pois sinto estranheza e, de fato, não sei.
O que sei é que hoje, dia vinte e quatro de dezembro de 2015, no Rio de Janeiro está fazendo um calor desgramado! Bom, e nesse calor nada melhor que ir para academia! Sim, neste dia de espíritos alterados, resolvi ir à academia e pedalar, talvez também tentando provar que me incluo na lista dos alterados.
Os alterados da academia hoje estavam escassos, o que só faz aumentar o status de estranheza dos espíritos presentes. Bom, não sei bem o porquê, fui na academia. Também não sei bem porque não deveria ter ido.
- Ahhhh, natal é um dia especial!
- Hum, ok. De fato, hoje o funcionamento das academias tem horário especial.
Não gosto de academia. Mesmo quando esqueço disso, minha foto no registro de matrícula sempre aparece no computador a cada entrada para me lembrar. Se acontecesse um concurso, não sei se eu ganharia, mas arrisco dizer que estou entre as dez fotografias mais desanimadas do mundo da história das fotografias de academias.
Uma vez o rapaz da secretaria me perguntou se eu gostava de zumba.
....
Pressionei a digital para passar pela roleta de entrada e lá estava ela: a fotografia finalista, na tela do computador pra todo mundo ver! Olhei para o rapaz e, rindo, apontei ”Olha a minha cara de quem gosta de zumba!” O rapaz não aguentou e cedeu levemente a sua posição profissional, rindo daquela situação junto comigo. É, definitivamente, eu não seria a garota propaganda da academia.  
Diante dessa circunstância pessoal de desgostos, resolvi adotar algumas táticas que me possibilitassem mais prazer naquele espaço. Ficar correndo numa esteira por horas sem chegar a lugar nenhum, enquanto rola a sessão da tarde, não é o meu barato. Resolvi, então, correr na bicicleta. Não que a bicicleta da academia vá me levar a algum lugar.... Mas ali eu poderia... levar livros! Sim, vou me exercitar enquanto leio! Ótimo, fiquei mais alegrinha J
Comecei com Hemingway. Livro de contos, incrível! Um dos últimos que comprei. Consegui pedalar cinquenta minutos sem me sentir um rato all the time. Bacana, boa tática! Reparei que o número de bicicletas é bastante reduzido em relação aos outros aparelhos. As bicicletas são mais simples, não têm muitos botões turbo, adicionais de cargas ou outros recursos mais sofisticados para turbinar no carnaval. Perto de mim ficam mais duas bicicletas, uma na frente e outra ao lado. Estão quase sempre vazias. Reparei também que as pessoas que utilizam as bicicletas costumam ter características peculiares dos frequentadores não beatos de academias. Provavelmente, alguns concorrem comigo no quesito “pior fotografia do mundo”.
Passei agora para Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio. Na verdade, estreei hoje Italo Calvino Fitness! E não é verdade que este natal inusitado foi incrível na academia? Sentei no meu cativo aparelho, acomodei minha garrafa de água, toalhinha e mp3. Apoio meu livro no painel a frente e começo a pedalar. Nos fones escuto barulho de chuva. E Ítalo começa a falar sobre leveza.  Sobre a leveza da linguagem, leveza do mundo, sobre experimentar a leveza. O tempo de minha experiência corre mais leve com Calvino. “...se a ideia de um mundo constituído de átomos sem peso nos impressiona é porque temos experiência do peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso.”
As pessoas correm ao meu lado. Escutam algo nos seus fones que eu não sei o que pode ser. Dormem, sonham algo que eu não sei o que é, levantam de suas camas e vão correr e levantar pesos na academia. Ter a experiência do peso das coisas é o que permite apreciar com leveza. Tirando os halteres que ficam na frente do espelho no segundo andar, não sei quais são os pesos de cada um. Sei dos pesos que me atravessam, sei das minhas ladainhas cotidianas, das minhas teimosias e intolerâncias. Sei que, de alguma forma, cada um arranja um jeito de lidar com seus pesos. Talvez por isso eu possa rir da zumba, ou reparar nas bicicletas que não vão a lugar nenhum e chegar a algum lugar com elas. Talvez o meu riso revele um grau de admiração. Não à zumba! Não chegamos a tanto, né? O que admiro é esse lugar que criamos de estratégias de levantamento de pesos. Não gostar de alguma coisa, não precisa ser um discurso de ódio sobre essa coisa. Acredito que a leveza nos indique a possibilidade de manter lugares estranhos, mas não hostis.   
Bom, estava eu na academia. Também estavam Calvino-Fitness, o rapaz da secretaria, um professor sentadinho no tatame olhando seu celular, três pessoas correndo nas esteiras e um professor que corria de um lado ao outro olhando o relógio desesperado para ir para casa comer rabanadas. Ler na academia de ginástica já tinha me dado muitos pensamentos viajantes ali naquela salinha surreal dos adeptos da corrida não-nômade. Mas eis que não satisfeito, o grande capitão planeta dos natais quis me presentear com mais um encontro inusitado. Aos vinte minutos de corrida, pensando se  deveria ou não me sentir culpada pela inquietação do pobre professor aflito, descobri que eu não era tão original assim. Na bicicleta ao lado, um homem, com um livro no seu mais alto padrão estilo-bíblia, não usa fones de ouvido com barulho de chuva. Ele usa tampões. Sim, ele usa tampões de ouvido e carrega um livro maior que o alcorão. Caramba... bolei. Confesso que estendi meu tempo na bicicleta, me retorcendo e tentando descobrir de que se tratava o livro do coleguinha. E, quando descobri, fiquei mais bolada ainda: era um livro sobre disciplina da mente. Olhei de relance sua mochila para saber se havia ali um sabre de luz, não sei em que nível meu espírito se encontra alterado, mas achei verdadeiramente possível que, bem ao meu lado, estivesse um Jedi!
É, não sei como definir o natal. Acho que não existe “o natal”, existe a rabanada, a farofa, o peru. Existe uma expectativa televisiva sobre um ideal de corredores que não suam sobre uma campina verde cheia de coelhinhos. Mas, francamente, nem todos curtem coelhinhos, campinas ou o peru da Fátima Bernardes. Nem todos têm religião ou família, wifi ou fé em alguma coisa. Eu não tenho religião, mas acredito que alguma coisa acontece neste mundo louco de esteiras e perus de dezembro. Alguma coisa que nos demanda um exercício constante de tentar equilibrar pesos. E a leveza é isso, a leveza só é leve no conhecimento da experiência do peso. Se houvesse “o natal”, ele seria, para mim, o período em que nos lembramos da potência da leveza sem a ingenuidade de não acreditar em pesos. Se acreditamos em Papai Noel, morremos de diabetes num caminhão de refrigerantes. Se não acreditamos, morremos de tédio e anabolizantes num campeonato de fisiculturismo. Acho que ler Calvino na academia de ginástica me mostrou um caminho interessante para compreender o sentido desses espíritos alterados. Talvez estejamos buscando a leveza com muita concretude ou talvez estejamos buscando a fada do dente sem dente. Quer dizer, a leveza da fada só pode existir no corpo do dente. E isso não significa que não existam fadas ou que não existam dentes. Significa que é possível passar um dia de natal na academia sem ser um fisiculturista e ainda encontrar um Jedi na bicicleta ao lado.

   
Ana Jedi Gabriela 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Precisamos falar sobre Calvin, Mafalda e Snoopy também


    Não gosto de amigo oculto. Quer dizer, não gosto daqueles amigos ocultos convencionais de presentes pré-determinados e apáticos. Principalmente quando acontecem no trabalho. Existe alguma coisa mais formalizada informal que presentes utilitários trocados com uma pessoa com a qual você nunca chegou, sequer, a trocar palavras? E, depois, ainda é de praxe aquele meio abracinho, em uma fotografia sem graça de sorrisos amarelos.
    Bem, o último ano que passou não foi muito bom para mim. Uma das coisas, porém, que posso listar no “lado bom da força” foi que, pela primeira vez em muito tempo, não participei de amigo oculto nenhum. Isso, com certeza, nos poupa um belo tempo gasto em trabalho não remunerado. Tem pessoas que gostam, e eu juro que, às vezes, tento entender como alguém pode gostar de atividade tão impessoal de pseudo-intimidade-alegre.  Às vezes fico pensando porque não trocamos notas de dinheiro dentro de envelopes coloridos. Acho que seria mais divertido, ao menos poderíamos colorir os envelopes e, talvez, escrever neles várias sugestões de presentes os quais você acredita que, realmente, têm afinidade com aquela pessoa. Daí ela recebe aquilo, vê seu colorido, seu traço de desenho tosco...  Talvez o papel venha com alguma mancha de gordura que você deixou cair enquanto desenhava e comia rabanadas na cozinha à noite. E aí você pode até se desculpar pela mancha, e explicar que estava fazendo rabanadas, e talvez surja uma boa conversa daí. Uma conversa que não precisa ser alegre, mas que tenha vontade de conversa.  É, às vezes tento entender e penso mais ou menos por aí: o amigo oculto pode ser bom, mas precisa ter brechas para o oculto. Se isso não acontece, fica tudo comercial e obrigatório, e aí realmente é aquele horário político obrigatório que ninguém quer ver, mas todos fingem que se interessam pra não pegar mal.
    A coisa já começa ruim, quando primeiro tem aquele momento em que você torce para tirar alguém com quem você tenha o mínimo de proximidade. Ou, ao menos, que não seja aquela pessoa nova que apareceu de paraquedas na última hora, da qual você não sabe absolutamente nada. E se você apertou os olhos e pediu com todas as forças para não ser aquela pessoa, você errou.
_ “Que não seja Zezinho, que não seja... é esse mesmo o nome dele?...”
    Pronto! É o Luizinho... Luizinho! É esse o nome... Sabia que era alguma coisa com “inho”! Bom, agora comece rapidamente a pensar o que você vai falar sobre ele. Lembra o dia que você esbarrou com ele no corredor e ele estava... Como ele estava?... De lado! Isso, ele estava meio de ladinho, passando rápido pelo corredor e aquilo te irritou muito, pois você estava de TPM naquele dia, e aquela criatura correndo rápido de ladinho te lembrou uma porra de um siri gigante que atrapalhava teu caminho! Que inferno! Esse puto de siri! Ótimo, você já tem algo a dizer.
    O presente. Bem, “presente” me parece uma palavra meio equivocada neste caso. Equivocada porque não me parece que tenha a ver com o ato de presentear alguém. Presentear alguém envolve uma troca íntima. Acredito com todas as forças que precisamos saber presentear sem que isso envolva um ato comercial. Presentear não deve, necessariamente, precisar de dinheiro. Presente é gostoso quando é algo pensado, algo que tenha um pouco de si e do outro. Não gosto de ter que sair, com pressa e sem vontade, no meio do horário de almoço, para comprar uma bolsa de couro de determinada marca para o Zezinho! Ou Luizinho! Whatever! Aliás, eu nem gosto do “fulanoZINHO”. E gosto menos ainda de fingir que gosto! Nós adultos somos muito ruins com isso. Fingimos tudo. Fingimos que gostamos quando não gostamos. E também fingimos que não gostamos quando gostamos. Quando crianças, sentíamos o que sentíamos e pronto. E aí vamos crescendo e sendo educados a esconder o coração, não tirar melecas e participar de coisas chatas por mera formalidade. Nos tornamos adultos carregados de melecas velhas e quinquilharias no coração. Não vou ser romântica e dizer que gosto de conversar com crianças. Não gosto de conversar com todas as crianças, tem crianças que são chatas. Tem crianças que só falam do homem aranha, e ficam gritando, e passam horas fazendo explosões com a boca. Mas isso não é um problema, elas também não conversam comigo quando me acham chata. É uma questão de afinidade e sinceridade. Por isso gosto das crianças, mesmo quando são chatas.
    Trabalhei com crianças em vários momentos da vida. Meu penúltimo emprego era com crianças. Trabalhava em uma equipe de vários profissionais que faziam atendimentos de natureza psicossocial com crianças. E foi com essas pessoas que vivi minha mais recente experiência de amigo oculto. Mas ali era diferente, convivíamos com crianças, poderíamos brincar, sabíamos brincar! Fiquei animada e logo me inscrevi na ata de reunião para propor meu fabuloso plano de amigo oculto i-no-va-dor!
_ “Então... vamos presentear nossos amigos com brincadeiras! Cada um propõe uma brincadeira que acha que tem a ver com seu amigo. Ou também pode ser uma música, uma performance, uma esquete!”
    Bom... As caras não foram muito receptivas, então eu tentei outra coisa.
_ “Então vamos nos presentear com brinquedos. Não brinquedos caros... porque atualmente os preços de brinquedos estão absurdos... Podemos escolher besteiras, brinquedos simples, dessas lojinhas de um e noventa e nove. Que tal?”
    Novamente as carinhas não foram lá muito boas. Os narizes estavam torcidos e os olhos de pena para mim foram tantos, que cheguei a pensar que realmente havia algo de errado com a minha pessoa. O silêncio se demorou por alguns dez segundos, até que alguma boca salivando se rebelou: _ “Eu quero um cinto bonitoooo! Não sou mais criança.” As outras boquinhas rapidamente também começaram a salivar com bolsas e cremes, maiôs, sandálias e maquiagens. Estava decidido, precisávamos de cintos bonitos para combinar com as calças.
    No final dos anos setenta Mafalda pergunta a su mamá:_”...com quantos anos a gente fica velha?” Su mamá lhe responde que é tudo uma questão de manter o espírito jovem. O que leva a menina a outra pergunta:_ “Tudo bem... mas e o espírito... com que idade ele começa a precisar de maquiagem?”
 Ai Mafalda... tantos anos trabalhamos com estas crianças e nunca, nem sequer em uma única reunião, te convidamos! Convidamos Sigmund Freud e o senhor Lacan, mas nunca a Mafalda! Gostaria de saber dos livros de cabeceira do senhor doutor que me trata. Acho que, antes de nos propormos a cuidar de alguém, deveríamos cuidar melhor da nossa lista de convidados. _ “Que lista de convidados?” Pergunta o senhor Lacan. Bem, na verdade, falo de várias listas. A lista de convidados para as reuniões da ONU, lista de convidados para as conversas mentais que temos antes de dormir, listas para aniversários, casamentos, conversas em mesa de bar e camas de motel. Também falo das listas de convidados para reuniões de família e direção de trabalho. Não falo “direção” no sentido de cargos profissionais, falo sobre direcionamento de sentido do que fazemos. Também não falo do “cuidar” só no sentido de tomar conta ou conduzir um tratamento de saúde. Falo de direção e cuidado como pensamento, reflexão. Sempre que vamos pensar sobre alguém ou sobre alguma coisa, ou simplesmente pensar, devemos fazer uma boa lista de convidados que saibam brincar. Do contrário, podemos estar diante do mais extraordinário nascimento de estrelas, que não conseguiremos ver nada mais que chuviscos a perturbarem nossos olhos. Poderemos estar diante de naves extraterrestres pousando na lua, mensagens em três diferentes línguas, amores capazes de fazer cantar. Gritarão tristezas e alegrias e todos os tipos de coisas misteriosas e inexplicáveis, e tudo que teremos ainda serão belos cintos de couro para combinarem com nossas calças.
    O melhor amigo do Calvin é um tigre, o Haroldo. O melhor amigo do Charlie Brown  é um cachorro, o Snoopy. O Linus também é amigo do Charlie e do Snoopy. Aliás, quem não é amigo do Snoopy? Eu gosto de todos eles e tenho todos na cabeceira e na bolsa. Gosto de convidá-los para minha casa. Deixo meus convidados virem como quiserem, de calças, vestidos, descalços, pintados, com perucas... Não pré-combinamos isso, porque isso não é o principal. Exceto, é claro, quando é festa do chapéu, do pijama ou da gravata maluca. Acho mesmo que precisamos falar mais sobre Paty Pimentinha e Mafalda. Acredito (e isso apazigua meu coração) que, se elas estivessem naquela reunião de trabalho, teriam topado o tempo de brincadeira. Afinal, trabalhamos duro e... Estamos fazendo isso e... Quer dizer, pra quê mesmo isso tudo? Uma vez, o Charlie perguntou pro Linus porque eles precisavam estudar. O Linus disse que era para que tirassem boas notas. E para que boas notas? Bom, para que consigamos nos formar e conseguir um emprego que nos pague bem e assim consigamos matricular nossos filhos em boas escolas para que... Bem, para que eles tirem boas notas!
     Você pode estar se perguntando se seria mesmo uma boa dar ouvidos a um menino que casualmente troca ideias com um cobertor azul. Ou talvez se pergunte, por que questionar tanto um simples amigo oculto? E o que posso lhe dizer é que não questiono o amigo oculto. O que questiono é o oculto. A falta dele quando deveria haver, e o pseudo-oculto que se desvela em um acordo coletivo onde mantemos a mediocridade esvaziada de todo dia. Esvaziada de desejo, de sentido, de autenticidade. Lembro-me de Antunes Filho e o convido também, junto a Calvin e companhia, para brincar na nossa festa. Em uma de suas declarações, Antunes diz:_ “Está tudo se esfarelando. A fé no outro se esfarela. Você não pode contar com ninguém, você fica cada vez mais solitário e contando com os eletrodomésticos.” Pois é disso que se trata esse “amigo oculto da depressão”: a dureza com que levamos tudo só nos permite brincar brincadeiras didáticas que corroboram com nossas vidas de realidades vazias de sentido, que precisam a cada fim de ano serem apertadas com belos cintos.    
    Brincadeiras didáticas são chatas. É quase como o que acontecia nas antigas aulas de informática das escolas nos anos 90. Você ia para a aula todo animado, porque sempre no final a professora dava 30 minutos de tempo livre no pc! Tempo livre no pc, que demais! Vamos jogar! Então, você e sua dupla abriam os jogos que tinham instalados e... eram to-dos didáticos. Dinossauros são legais quando são dinossauros e não quando ensinam a gente a resolver funções matemáticas.  
    O último ano que passou não foi bom para mim. E isso é algo que eu espero compartilhar com um amigo. E mesmo que ele não me entenda ou fale merdas e me dê conselhos estúpidos, ou simplesmente não faça nada além de ser meu amigo, ok. Passaremos madrugadas sozinhos na cozinha comendo rabanadas. Também encheremos nossas caras quando der na telha, teremos dores de cabeça, sentiremos raiva e medo e também acharemos estranhas e desconfortáveis mais da metade das coisas que acontecem no mundo. Os sorridentes entusiastas de Recursos Humanos que me desculpem, mas é muito solitária essa vida de polir cintos e dentes. Cansei de falar sobre produção, precisamos falar sobre Calvin, Mafalda e Snoopy também.

Ana Gabriela lendo Snoopy

      Snoopy lê Tino Freitas_ Uniforme_ "Ouviu dizer que era mais seguro andar nas nuvens..."  ;)



sábado, 5 de dezembro de 2015

Nudes, cupcakes e o marido chinês


     Algumas pessoas têm fotos de pornografia no celular. Eu tenho cupcakes. Gosto de ver cupcakes e, às vezes, gosto de enviar fotos de cupcakes para meus melhores amigos. Também gosto de desenhar banheiros. Me acalma e me faz sentir bem quando estou doente. Gosto do cheiro da cor laranja no papel. Gastar um giz de cera laranja, bem laranja, no papel é uma delícia. Gosto de cactos e pequenas plantinhas suculentas. Gosto de cafés, chuvas e barulho de vento. Gosto de morder borrachas. Quando era pequena, minha mãe advertia sobre o perigo de comer borrachas. Aprendi que borrachas não são comestíveis. Aprendi também que continuo gostando de comer borrachas. Comer comê-las não, mas mordo-as todas. São gostosas de enterrar os dentes e provocam um calorzinho bom nas gengivas. Não como as borrachas por conta da nutrição, como as borrachas por gosto dos dentes. Gasto o giz de cera laranja no papel, por gosto do nariz, das mãos e dos olhos.
    Estou precisando trocar de celular. Resgatei meu celular antigo. Pequeno e sem cores. Ele cabe no bolso da calça e ninguém quer. Ele serve para fazer ligações para pessoas que estão longe fisicamente e não as perturbam com meus pensamentos recorrentes do tédio cotidiano. Uma coisa me vem à cabeça neste momento: telefones com fios. Na casa dos meus pais, em 1990, havia um telefone azul de fio. A primeira ligação telefônica que fiz foi um pouco antes disso, em um telefone cinza esverdeado daqueles que tinham uma rodinha de girar número por número. Meu pai me ensinou a usar o telefone e liguei para a vovó. Para dizer oi, perguntar se estava bem e, claro, usufruir da garantia de fazer esse tipo de “teste” no território seguro das vovós. Quer dizer, as crianças testam as coisas, experimentam, provam. Provar o mundo é uma delícia. Provo o gosto do café preto todos os dias. Provo as manhãs com Cartola e café preto. Existe alguma coisa sempre nova no provar. Não falo do provar que reprova, tampouco do provar restrito à novidade. Provo cafés a cada manhã. A cada manhã sou café e Cartola. Provar nesse sentido tem a ver com um experimentar brincante. Experimentar sem tempo, ou o melhor seria dizer: com tempo?
    Minha lista de gostos me faz giz laranja a cada vez que cubro uma folha grande pressionando a cera no papel. Nossas listas de gostos nos dizem aquilo que escolhemos para demorarmo-nos a cada vez que somos. Venho me perguntando: sobre o que temos escolhido nos demorar? A escolha de demorar-se em algo também é uma escolha de liberdade. Quero dizer com isso que o tempo utilitário serve à velocidade, e o tempo de demorar-se não serve a nada nem a ninguém. Ele demora sobre as coisas, ele experimenta a margem mole e porosa das coisas. A escolha de demorar-se é uma escolha de liberdade porque é uma escolha marginal. Demorar-se sobre as coisas é poder transitar pela margem das coisas. O tempo de demorar-se é brincante por poder entrar e sair do que são as coisas, por conhecer o nada que as coisas são.

Recentemente encontrei minha melhor amiga de infância. Nos conhecemos quando eu tinha oito anos de idade e ela, nove. Tempo de férias e tempo de recuperação de matemática. Sim, a matemática me deu presentes. Minha amiga sempre foi boa de conversa. Suas ideias são boas e é gostoso ter com quem pensar. Por algum motivo, meus melhores amigos, em sua maioria, optaram por viver longe de sua cidade natal. Minha amiga vive, há cerca de dez anos, na América do Norte. E, desta última vez que veio ao Brasil, celebramos seu casamento. Não com um brasileiro, nem um norte americano. Minha melhor amiga casou-se com um Chinês (e certamente isso já me dá um bom título para um próximo texto). Minha melhor amiga de infância tem um gosto pelas feições orientais, pelo feijão preto brasileiro, pela língua inglesa e por escolhas estéticas minuciosas. Costumamos conversar sobre tudo e, nesta breve passagem pelo Brasil, trocando experiências sobre praticidades e cotidianos, eis que surge a nova banalidade que circula como hábito de nossos conterrâneos: a partilha de pornografia na velocidade que o nosso 3G, 24 horas, permite. A todo momento, e em qualquer lugar, receber ou enviar materiais sobre os mais diversos conteúdos, inclusive pornografia, tornou-se rotina. Bom, aí é preciso que nos demoremos sobre o que margeia tudo isso. Minha amiga falou com espanto sobre esse novo costume, associando o comportamento à cultura brasileira. Disse que seu marido chinês considera estúpido que um homem envie pornografia a outro homem.
    Bom, eu não sei se é estúpido, sei que isso me desperta curiosidade. Não primeiramente pelo fato de ser pornografia aquilo que partilhamos. O que me instiga é isso que praticamos e denominamos partilha. Então acho que não é antes o conteúdo, mas, sim, o tempo. Me parece contraditório que o tempo da partilha seja veloz. E aí entendo a curiosidade pelo conteúdo. Imagine um encontro entre pessoas na rua. Cada um de nós pode pensar em formas diferentes de um encontro acontecer. Penso em dois corpos que se abraçam longamente... alguém morreu ou são namorados! Ou talvez tenham saudades um do outro. Mas, quem sabe ainda, gostem de se abraçar e dizer versos recém lidos na condução?
Penso em corpos que se esbarram, _ “Desculpa, foi sem querer! ” Sorriem sem graça e seguem, cada qual, seu caminho. Penso em encontros de raiva, tristeza, felicidade, dor, mania, paixão, último encontro, encontro inesperado, primeiro encontro, encontro de negócios, de reaproximação. Para cada encontro um tempo. E é no tempo que se demora, onde posso fazer lugar de partilha com o outro. Meu telefone antigo não suporta pornografia. No sentido de que, definitivamente, não tem suporte tecnológico para esse tipo de trâmite. Ele não tem 3G, wifi, nada disso, nenhuma tecnologia que carregue a marca da modernidade: a velocidade. A troca de qualquer conteúdo pelos celulares modernos é veloz. Assim que recebo uma fotografia do Topo Gigio pelado ou o que quer que seja, eu envio imediatamente para os meus contatos. E eles recebem o Topo Gigio pelado, ou o que quer que seja, aonde quer que eles estejam, cozinhando em casa, trabalhando, trocando fraldas, transando ou chorando em um velório.  Meu telefone velho não tem velocidade para pornografias, nem para cupcakes ou nudes do Stenio Garcia. Sempre que meu telefone velho toca eu fico feliz. Pois nesse número só me encontram pessoas de cafés e poesias longas de condução. O tempo longo me parece ter mais afinidade com partilhas.
 O problema em recebermos fotos de pessoas nuas pelo celular não são os corpos das pessoas que estão nuas, sejam eles jovens, velhos (sim, os corpos envelhecem e não há nada de feio nisso), gordos, tatuados ou magros. O problema é nos fazermos disponíveis a todo e qualquer momento. É a chatice da esvaziada e repetida história, sobre “vazar alguém pelado”, sempre tomando espaço nas manchetes dos jornais. Outra pessoa pelada, mas que raios! Será que não cansamos de ver bundas?!  Não interessa se é uma bunda famosa ou não, uma bunda é sempre uma bunda, todo mundo tem bunda. O problema é que aquilo que nos choca ainda é a bunda, e não o abuso sobre expor-se o outro contra sua vontade. O problema é a falta de cuidado ético consigo e com o outro. O descuido acontece antes, ao apressarmo-nos, sempre nos colocando na frente do outro. Ocupamos abusivamente todos os espaços de privacidade e solidão. Espaços necessários para que o outro permaneça existindo outro, na sua diversidade e nas suas próprias escolhas. Antes de encontrar o outro, eu saboto o outro, eu vazo o outro, arremesso coisas indiscriminadamente em cima dele. Eu arremesso o outro.
    Venho me perguntando sobre o que temos escolhido nos demorar. E com essa pergunta, acabam surgindo sempre as mesmas figuras repetidas e compulsivamente gastas, como a sensação de gozo enfraquecido pelo homem que bate punheta 50 vezes por dia. Não é fácil sair da prática da velocidade, o círculo compulsivo de funcionamento fácil nos faz acreditar na hierarquia da velocidade sobre o tempo. Aquilo que temos escolhido nos leva a pensar sobre nossas práticas de liberdade. Aquilo sobre o que escolho me demorar fala dos sentidos que trago junto a mim. Aquilo que escolho indica o que não escolho, tudo aquilo que não escolho fala da minha liberdade enquanto potência criativa em formas de existir. Escolho cupcakes, borrachas de comer, cheiros de sabonetes de pitanga. Escolho não querer receber mensagens 24 horas por dia. Escolho o gosto de escrever com lápis e papel porque me dá prazer. Escolho questionar se aquilo que escolho foi realmente escolhido por mim. Escolho o tempo de parar, escolho a urgência de nos determos sobre o tempo de demorar-se.


 Bela fotografia de Francisco Costa  https://www.flickr.com/photos/super_praia/

Ana Laranja____Ana Vermelha Gabriela