Hoje é dia de Natal. Natal é 25 mas, se já
começaram os preparativos do peru, já tá valendo, certo? Ainda não sei bem
falar sobre isso com um só sentido. Acho estranho dizer “natal é amor”, “natal
é paz”... Natal é ... família, aniversário de Jesus, ou o que quer que
queiramos dizer para sintetizar esta data. O espírito natalino carrega muitos
espíritos. São espíritos solidários, beatos, espíritos de gula e de fome. O
natal sem fome caminha junto ao “vou ficar bonita na sala”. Consumistas,
médiuns, crianças, velhos, ambientalistas, ateus e renas compõem esse fenômeno
de espíritos alterados. É no mínimo curioso, para não dizer bizarro, quando Noel,
Jesus e a coca cola se fazem presentes em uma mesma embalagem de biscoitos. Não
sou radical contra qualquer uma dessas definições bonitas sobre o natal, apenas
preciso pensar, pois sinto estranheza e, de fato, não sei.
O que sei é que hoje, dia vinte e quatro de
dezembro de 2015, no Rio de Janeiro está fazendo um calor desgramado! Bom, e
nesse calor nada melhor que ir para academia! Sim, neste dia de espíritos
alterados, resolvi ir à academia e pedalar, talvez também tentando provar que
me incluo na lista dos alterados.
Os alterados da academia hoje estavam escassos,
o que só faz aumentar o status de estranheza dos espíritos presentes. Bom, não
sei bem o porquê, fui na academia. Também não sei bem porque não deveria ter
ido.
-
Ahhhh, natal é um dia especial!
-
Hum, ok. De fato, hoje o funcionamento das academias tem horário especial.
Não gosto de academia. Mesmo quando esqueço
disso, minha foto no registro de matrícula sempre aparece no computador a cada
entrada para me lembrar. Se acontecesse um concurso, não sei se eu ganharia,
mas arrisco dizer que estou entre as dez fotografias mais desanimadas do mundo
da história das fotografias de academias.
Uma vez o rapaz da secretaria me perguntou se
eu gostava de zumba.
....
Pressionei a digital para passar pela roleta de
entrada e lá estava ela: a fotografia finalista, na tela do computador pra todo
mundo ver! Olhei para o rapaz e, rindo, apontei ”Olha a minha cara de quem
gosta de zumba!” O rapaz não aguentou e cedeu levemente a sua posição
profissional, rindo daquela situação junto comigo. É, definitivamente, eu não
seria a garota propaganda da academia.
Diante dessa circunstância pessoal de
desgostos, resolvi adotar algumas táticas que me possibilitassem mais prazer
naquele espaço. Ficar correndo numa esteira por horas sem chegar a lugar
nenhum, enquanto rola a sessão da tarde, não é o meu barato. Resolvi, então,
correr na bicicleta. Não que a bicicleta da academia vá me levar a algum
lugar.... Mas ali eu poderia... levar livros! Sim, vou me exercitar enquanto
leio! Ótimo, fiquei mais alegrinha J
Comecei com Hemingway. Livro de contos,
incrível! Um dos últimos que comprei. Consegui pedalar cinquenta minutos sem me
sentir um rato all the time. Bacana, boa tática! Reparei que o número de bicicletas
é bastante reduzido em relação aos outros aparelhos. As bicicletas são mais
simples, não têm muitos botões turbo, adicionais de cargas ou outros recursos
mais sofisticados para turbinar no carnaval. Perto de mim ficam mais duas
bicicletas, uma na frente e outra ao lado. Estão quase sempre vazias. Reparei
também que as pessoas que utilizam as bicicletas costumam ter características
peculiares dos frequentadores não beatos de academias. Provavelmente, alguns
concorrem comigo no quesito “pior fotografia do mundo”.
Passei agora para Italo Calvino, Seis propostas
para o próximo milênio. Na verdade, estreei hoje Italo Calvino Fitness! E não é
verdade que este natal inusitado foi incrível na academia? Sentei no meu cativo
aparelho, acomodei minha garrafa de água, toalhinha e mp3. Apoio meu livro no
painel a frente e começo a pedalar. Nos fones escuto barulho de chuva. E Ítalo começa
a falar sobre leveza. Sobre a leveza da
linguagem, leveza do mundo, sobre experimentar a leveza. O tempo de minha
experiência corre mais leve com Calvino. “...se a ideia de um mundo constituído
de átomos sem peso nos impressiona é porque temos experiência do peso das
coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos
admirar igualmente a linguagem dotada de peso.”
As pessoas correm ao meu lado. Escutam algo nos
seus fones que eu não sei o que pode ser. Dormem, sonham algo que eu não sei o
que é, levantam de suas camas e vão correr e levantar pesos na academia. Ter a
experiência do peso das coisas é o que permite apreciar com leveza. Tirando os
halteres que ficam na frente do espelho no segundo andar, não sei quais são os
pesos de cada um. Sei dos pesos que me atravessam, sei das minhas ladainhas
cotidianas, das minhas teimosias e intolerâncias. Sei que, de alguma forma,
cada um arranja um jeito de lidar com seus pesos. Talvez por isso eu possa rir
da zumba, ou reparar nas bicicletas que não vão a lugar nenhum e chegar a algum
lugar com elas. Talvez o meu riso revele um grau de admiração. Não à zumba! Não
chegamos a tanto, né? O que admiro é esse lugar que criamos de estratégias de
levantamento de pesos. Não gostar de alguma coisa, não precisa ser um discurso
de ódio sobre essa coisa. Acredito que a leveza nos indique a possibilidade de
manter lugares estranhos, mas não hostis.
Bom, estava eu na academia. Também estavam
Calvino-Fitness, o rapaz da secretaria, um professor sentadinho no tatame
olhando seu celular, três pessoas correndo nas esteiras e um professor que
corria de um lado ao outro olhando o relógio desesperado para ir para casa
comer rabanadas. Ler na academia de ginástica já tinha me dado muitos
pensamentos viajantes ali naquela salinha surreal dos adeptos da corrida não-nômade.
Mas eis que não satisfeito, o grande capitão planeta dos natais quis me
presentear com mais um encontro inusitado. Aos vinte minutos de corrida,
pensando se deveria ou não me sentir
culpada pela inquietação do pobre professor aflito, descobri que eu não era tão
original assim. Na bicicleta ao lado, um homem, com um livro no seu mais alto
padrão estilo-bíblia, não usa fones de ouvido com barulho de chuva. Ele usa
tampões. Sim, ele usa tampões de ouvido e carrega um livro maior que o alcorão.
Caramba... bolei. Confesso que estendi meu tempo na bicicleta, me retorcendo e
tentando descobrir de que se tratava o livro do coleguinha. E, quando descobri,
fiquei mais bolada ainda: era um livro sobre disciplina da mente. Olhei de
relance sua mochila para saber se havia ali um sabre de luz, não sei em que
nível meu espírito se encontra alterado, mas achei verdadeiramente possível que,
bem ao meu lado, estivesse um Jedi!
É, não sei como definir o natal. Acho que não
existe “o natal”, existe a rabanada, a farofa, o peru. Existe uma expectativa
televisiva sobre um ideal de corredores que não suam sobre uma campina verde
cheia de coelhinhos. Mas, francamente, nem todos curtem coelhinhos, campinas ou
o peru da Fátima Bernardes. Nem todos têm religião ou família, wifi ou fé em
alguma coisa. Eu não tenho religião, mas acredito que alguma coisa acontece
neste mundo louco de esteiras e perus de dezembro. Alguma coisa que nos demanda
um exercício constante de tentar equilibrar pesos. E a leveza é isso, a leveza
só é leve no conhecimento da experiência do peso. Se houvesse “o natal”, ele
seria, para mim, o período em que nos lembramos da potência da leveza sem a
ingenuidade de não acreditar em pesos. Se acreditamos em Papai Noel, morremos
de diabetes num caminhão de refrigerantes. Se não acreditamos, morremos de
tédio e anabolizantes num campeonato de fisiculturismo. Acho que ler Calvino na
academia de ginástica me mostrou um caminho interessante para compreender o
sentido desses espíritos alterados. Talvez estejamos buscando a leveza com
muita concretude ou talvez estejamos buscando a fada do dente sem dente. Quer
dizer, a leveza da fada só pode existir no corpo do dente. E isso não significa
que não existam fadas ou que não existam dentes. Significa que é possível
passar um dia de natal na academia sem ser um fisiculturista e ainda encontrar
um Jedi na bicicleta ao lado.
Ana Jedi Gabriela