segunda-feira, 29 de outubro de 2018


Não nos afastemos_ poema de tempo presente

Acordei revirando os potes de biscoito
Despensa, fundos de gavetas
Geladeiras


Não me recordo de ter tido sonho algum
Acordei sem saber da hora exata
Porque hora de acordar é quando o corpo acorda
E com o corpo eu prefiro ser suave

Quase sempre eu lembro dos sonhos
Mas hoje não
Então hoje eu acordei de alguma coisa como uma noite sem sonhos
E fui revirar a casa
Sala vazia, cozinha, corredor
O quarto a meia luz com os lençóis amassados

Vesti uma blusa de manga longa que já quase não me coube mais
Faz frio lá fora e o tempo fechou
e parece que...
_ ou até mesmo_
não amanheceu
Quase sempre eu lembro dos meus sonhos
Mas hoje não
Então eu revirei gavetas
E cabides
Janelas
Potes de temperos pela cozinha
Cafés, números de telefones, álbuns antigos de música popular brasileira
Cadernos, cartas escritas a mão
Janelas para escrever cartas escritas a mão

Hoje eu acordei revirando as coisas
Tentando cavar um espaço
no silêncio escuro
que fez nesta noite em que eu não pude me lembrar dos meus sonhos
Mas eu sempre lembro dos sonhos! _quase sempre eu lembro dos sonhos...

Pensei que poderia escrever ontem mesmo
Mas ontem eu não pude_ tem dias que a gente não pode
Tem dia em que faz silêncio e é bom
Mas tem silêncio que faz o dia e aí não é bom
E ontem...
ontem eu dormi com esse silêncio de uma noite sem sonhos
E isso não é bom

Por isso hoje eu acordei revirando os potes de biscoito
Despensa, fundos de gavetas e geladeiras
Hoje eu acordei revirando palavra em sonho
Porque tem coisa que a gente não lembra e passa
Mas tem coisa de memória que a gente não vive sem

A minha existência sempre foi de corpo
E no meu corpo habitam as delicadezas
 As palavras, o coração
As febres, as doenças de enamoramentos
Os frisos, as dobras, as rachaduras e vozes
A fragilidade
As intermitências, modulações,
Nuances, estranhamentos, múltiplos sentidos

Então, hoje eu acordei revirando os potes de biscoito
Sapatos, despensa, fundos de gavetas
Estantes, geladeiras
  
Tá faltando poesia na despensa
E tem coisa que a gente não vive sem
Tá faltando coisa pra encher o pote
Tá faltando pele, tá faltando palavra
Pessoa, Caio, Clarice
 Freire, Manoel, Cora
Glauber, Chico, Boal
Patativa

O negócio é que tá com falta de gente que entenda Patativa
E por isso deve ser
Que eu acordei dessa noite sem sonhos
E resolvi continuar fazendo isso que eu sempre faço
Buscar palavras
Estranhar palavras
Revirar palavras
E grifar à mão livre essas coisas que são algo como que sonhos
 para que possamos botar dentro dos potes
E nos armários e fora deles também

Nas ruas, nas esquinas, nos sinais
Nas portas das casas, e nos pisos das varandas
Hoje eu acordei revirando as coisas
Para que nos nossos silêncios não nos faltem palavras
Para que nos próximos dias possam ainda haver coisas como sonhos
E ruas, e escolas
E versos e Pessoas e Drummonds e varandas
para que possamos permanecer de mãos dadas
e rexistir nas delicadezas
No tempo presente, na vida presente
não nos afastemos


A.G.R.