Não nos afastemos_ poema de tempo
presente
Acordei revirando os potes de biscoito
Despensa, fundos de gavetas
Geladeiras
Não
me recordo de ter tido sonho algum
Acordei
sem saber da hora exata
Porque
hora de acordar é quando o corpo acorda
E
com o corpo eu prefiro ser suave
Quase
sempre eu lembro dos sonhos
Mas
hoje não
Então
hoje eu acordei de alguma coisa como uma
noite sem sonhos
E
fui revirar a casa
Sala
vazia, cozinha, corredor
O
quarto a meia luz com os lençóis amassados
Vesti
uma blusa de manga longa que já quase não me coube mais
Faz
frio lá fora e o tempo fechou
e
parece que...
_
ou até mesmo_
não
amanheceu
Quase
sempre eu lembro dos meus sonhos
Mas
hoje não
Então
eu revirei gavetas
E
cabides
Janelas
Potes
de temperos pela cozinha
Cafés,
números de telefones, álbuns antigos de música popular brasileira
Cadernos,
cartas escritas a mão
Janelas
para escrever cartas escritas a mão
Hoje
eu acordei revirando as coisas
Tentando
cavar um espaço
no
silêncio escuro
que
fez nesta noite em que eu não pude me lembrar dos meus sonhos
Mas
eu sempre lembro dos sonhos! _quase sempre eu lembro dos sonhos...
Pensei
que poderia escrever ontem mesmo
Mas
ontem eu não pude_ tem dias que a gente não pode
Tem
dia em que faz silêncio e é bom
Mas
tem silêncio que faz o dia e aí não é bom
E
ontem...
ontem
eu dormi com esse silêncio de uma noite sem sonhos
E
isso não é bom
Por
isso hoje eu acordei revirando os potes de biscoito
Despensa,
fundos de gavetas e geladeiras
Hoje
eu acordei revirando palavra em sonho
Porque
tem coisa que a gente não lembra e passa
Mas
tem coisa de memória que a gente não vive sem
A
minha existência sempre foi de corpo
E
no meu corpo habitam as delicadezas
As palavras, o coração
As
febres, as doenças de enamoramentos
Os
frisos, as dobras, as rachaduras e vozes
A
fragilidade
As
intermitências, modulações,
Nuances,
estranhamentos, múltiplos sentidos
Então,
hoje eu acordei revirando os potes de biscoito
Sapatos,
despensa, fundos de gavetas
Estantes,
geladeiras
Tá
faltando poesia na despensa
E
tem coisa que a gente não vive sem
Tá
faltando coisa pra encher o pote
Tá
faltando pele, tá faltando palavra
Pessoa,
Caio, Clarice
Freire, Manoel, Cora
Glauber,
Chico, Boal
Patativa
O
negócio é que tá com falta de gente que entenda Patativa
E
por isso deve ser
Que
eu acordei dessa noite sem sonhos
E
resolvi continuar fazendo isso que eu sempre faço
Buscar
palavras
Estranhar
palavras
Revirar
palavras
E
grifar à mão livre essas coisas que são algo como que sonhos
para que possamos botar dentro dos potes
E
nos armários e fora deles também
Nas
ruas, nas esquinas, nos sinais
Nas
portas das casas, e nos pisos das varandas
Hoje
eu acordei revirando as coisas
Para
que nos nossos silêncios não nos faltem palavras
Para
que nos próximos dias possam ainda haver coisas como sonhos
E
ruas, e escolas
E
versos e Pessoas e Drummonds e varandas
para
que possamos permanecer de mãos dadas
e
rexistir nas delicadezas
No
tempo presente, na vida presente
não
nos afastemos
A.G.R.