sábado, 19 de março de 2016

Xixi sentado_ Contos de verão


Escrevo.

Escrevo, durmo, espero. Procuro um jeito de me levantar sem acordar do sonho.
O dia começa em algum lugar do meu relógio. Eu não quero saber. Não sei que horas são. Eu só escrevo.

Tarde da noite para o senhor que assiste novelas. A última novela é às 21h. A mulher pobre e bonita se apaixona por um homem rico e bondoso que se casa com uma mulher rica e malvada. No intervalo o senhor se levanta para fazer xixi. Sentado na privada ele reflete sobre um antigo amor. As contas de gás e água, a obra por terminar no corredor, o desejo, velozmente reprimido, de beijar um outro homem na fila do ponto de ônibus.

Homem não faz xixi sentado. 
Homem não dá o rabo. 
Mas homem também não vê novela,....

 _"então foda-se! Faço xixi sentado e vejo a merda que eu quiser!"

    Às dez da noite, o senhor vizinho do prédio ao lado dorme. Na frente da TV, esticado e mole, como um boneco de pano frouxo numa tarde de calor e sofá bagunçando a sala.

O que uma sala tem? O que compõe uma sala? No verão a sala é composta de calor. Sofás cobertos de um fino lençol amenizam o desconforto causado pela sensação de suor em demasia no corpo quente. Brinquedos se acumulam docemente pelos cantos. Na casa moram crianças. Um coelho azul, uma chaleirinha de borracha, umas pedras verdes turquesa. O som do ventilador é contínuo e  forma uma teia estática sobre o tempo. O trânsito entre a sala e a geladeira marca um percurso contínuo pelo mesmo ladrilho quebrado. A geladeira está cheia.

Toc, toc, toc, toc-tlac!

Toc, toc, toc, geladeira.

A porta da geladeira abre. Frescor na cara. Na cara mesmo, porque rosto é coisa de moça. Cara é de cavalo, de homem, de palhaço, de pau. Não sabia bem o que cairia melhor naquele momento. Talvez nenhum desses. Talvez tivesse cara de saco, talvez estivesse de saco cheio pelo calor daquele verão dos infernos! Nunca se acostumara com aquilo. Nunca se sentia tão desalmado como no verão. Não desalmado de desumano, mas desalmado de sem alma mesmo, como se tivessem lhe amputado o espírito como a um órgão.

A geladeira. O que vim pegar na geladeira? Não lembro.... Deixa chegar mais perto e fechar os olhos e sentir a pele querendo resfriar. Que delícia. Acho que aqui deve ser o melhor lugar do mundo. Acho que as pessoas deveriam viver assim. Deveríamos instituir um estado de pessoas que seriam infinitamente mais interessantes e frescas. Pessoas que se declarassem odiosamente contra o calor doentio e marcassem encontros na sessão de iogurtes do mercado. Para os carnívoros poderiam haver belas histórias de amor nos frigoríficos de açougue.

Pão, couve, bananas, chocolates, salsichas, biscoitos...

Um copo de água e um pacote de biscoitos frio. Tudo é melhor frio. Voltou à sala. Iria ajeitar o fino lençol sobre o sofá amassado, deitar o corpo torto novamente, apoiar o pacote de biscoitos na barriga e comer aqueles farelos até começar a ressonar.
Não acredito que pudesse não sonhar. Não acredito também que um dia o calor vai passar. Sei racionalmente que o verão são quatro meses, sei também que da sala a geladeira são sete passos e um ladrilho quebrado. Não acredito que dias de sonhos ressonados e novelas requentadas sejam algo para cedo mudar.

Ana Gabriela Rebelo