Rio
de Janeiro, 26 de Julho de 2015
A história começa em uma tarde de inverno.
Antes dos cavalos dormirem, dormem os homens. E os homens, assim como os
cavalos, sonham. Sonhara que ardia em febre. Já não se sustentava de saudade.
Já não dormia mais, dia e noite sonhava. Resolveu, então, escrever uma carta.
Uma longa carta contando de seus dias na fazenda. Ali tudo era molhado. A terra
molhada, o capim úmido do sereno pela manhã, as pedras molhadas da chuva do
meio da tarde. As pedras guardam a água que vem do céu.
Na fazenda faltava papel pautado. Papel
branco liso também não tinha. Então João escreveu em uma toalha de mesa azul
clara que ficava guardada no armário em frente à cristaleira. Sua superfície de
tecido roto revelava o tempo longo e distante de dias e noites e cafés e madrugadas.
A João, as madrugadas sempre pareceram um tempo fora do tempo. Como se entrando
pela madrugada fosse possível alargar o tempo. Como se tudo fosse mais comprido
no vagar do silêncio daqueles que dormem. Adentrar a madrugada é como prolongar
o tempo. A sensação que tinha era como se, mesmo quando morresse, permaneceriam
as madrugadas.
João tinha saudades de sei lá o quê. E esse
sentimento não era bom nem ruim, era isso, sempre fora isso. João sentia
saudades desde sempre. Lembrou-se de um dia quando, ainda pequeno na casa dos
pais, vagava pelo tapete da sala enquanto muitas pessoas chegavam. Era natal.
João tinha quatro tios de parte de mãe, e mais cinco de parte de pai. Todos
tinham seus filhos que chegavam e, um a um, iam pedir a benção às avós e bisas.
A família era numerosa. A casa era grande. Desde que ele nascera, o Natal
acontecia, ano após ano, ali.
Perto da árvore se acumulavam presentes de
quase todos os tamanhos. Afinal, que árvore poderia comportar presentes de
todos os tamanhos? Um dia antes do Natal, João gostava de sentar ao lado da
árvore e ficar olhando os enfeites coloridos. Cada superfície reluzia e
refletia sua imagem para dentro daquela sala paralela. Na sala refletida era
tudo silencioso, e as coisas mudavam de tamanho do gigante desforme ao distante
infinito.
Cada palavra de João era pequena. Cada
palavra levava um sopro. Saia fácil, fluía. E eram muitas palavras. E,
escrevendo naquela enorme toalha velha, poderia demorar-se horas, poderia
demorar-se dias. Ao longo da noite, iam acumulando-se mais e mais pessoas para
o Natal. A sala paralela ia, aos poucos, afundando em um mar de pessoas
disformes e falantes. João tinha saudade e, talvez por isso, não falasse muito.
Sua tia dizia que era timidez. Timidez é a falta de vontade de falar?
Acreditava que era a falta de ter o que dizer, dizer aquilo que se pode falar,
aquilo que é conversável no natal. Porque a tia Adelina conhecia João no natal.
Conhecer alguém no natal deve ser rápido e conclusivo. Deve ser preciso. Não
existe tempo no natal, nem tristeza, nem calcinha furada e palavras de baixo calão. Existe peru assado e farofa de miúdos. A roupa deve estar limpa e
passada, de preferência, nova e elegante como apresentadores de telejornal. No
natal, João usava sapatos de verniz e gravatinhas coloridas. Suas irmãs
enfeitavam-se com enormes laçarotes na cabeça e broches de pérolas e
porcelanas. Eram meninas lindas. Ele era tímido. Muito bonito, não existia
ninguém feio na família. Mas era tímido. A timidez vencia a bonitez.
Estava sozinho na fazenda havia quase um
mês. E ali não era nada. Ali, tomava café pela manhã e fazia longas caminhadas.
O fogo que aquecia a casa era o mesmo que fervia a sopa. A terra tinha barulho
suave e não discordava do fogo. Ali João podia ser saudade. Não saudade de
alguém, não saudade do natal ou da primavera passada. João não sentia falta de nada,
e era isso mesmo que era. Durante algum tempo, quando pequeno, acreditara que a
timidez da tia Adelina fosse isso. Esse sentimento de ser sempre distante das
coisas e, por esse motivo, ser aquilo mesmo de mais próximo que se pode ser
delas. João pensava sobre as coisas e sobre a sala paralela das coisas. O
tapete apinhado de crianças e o corredor vazio davam nome à mesma casa, ao
mesmo natal. João não tinha saudade, João era saudade. Ser saudade era como ter
a capacidade de nunca se deixar nomear pela bonitez ou timidez das coisas. Ser
saudade era simplesmente poder estar próximo às indefiníveis coisas. Era
fazer-se presente na sala paralela em um dia de caloroso almoço de família na
sala principal da mesma casa. E isso não era bom, nem era ruim. Só era assim
que era.
Ana Gabriela Rebelo