segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Saltos antigravitacionais





Eu tenho saltos antigravitacionais. Como assim? Como é isso?
Algumas pessoas podem ser extremamente equilibradas na sua respiração, ou seja, elas inspiram e expiram de forma regular na balança, intercalam os movimentos para dentro e para fora. Admiro essas pessoas e confesso de pronto que não tenho a menor habilidade para tal façanha equilibrista. Eu vivo dentro. Dentro, fundo e mais dentro e mais fundo mergulho e é de vez em quando que saio e aí chegamos a ele: o salto antigravitacional.
Imagine que a força que te prende é toda e tanta pra si e que, sem aviso, ela resolve reverter a direção e expandir inteira em segundos... esse é o movimento: nunca saí de mansinho, eu saio em saltos.
Sempre fui muito introvertida. Quem me conhece sabe que tenho longos tempos de reclusão. Quando criança era inclusive extremamente tímida_ tinha medo da minha voz soando alto nesses espaços com pessoas. Sempre tive cá meus mundos subaquáticos e é sempre um exercício que demanda energia imensa sair deles e circular fora. Lá fora é bom, mas é quente. E rápido também, lá fora é tudo muito veloz e cheio e isso tudo me cansa. Mas às vezes eu saio, e saio com tudo.  Minha avó costumava dizer que eu ligava a rádio besteirol e não parava. Porque de peixe calado eu virada de repente uma pequena maluquete faladora de bobagens. E com a vovó era uma delícia ser tagarela, era esse o exercício mútuo do riso pela ludicidade expandida. Porque havia confiança e havia amor_  e havia na relação, também, o tempo para o silêncio fundo das águas. E a expansão verdadeira, a meu ver, só pode vir desse permitido mergulho no íntimo silêncio de cada um.
Isso de falar de águas é coisa séria e Bachelard bem o sabe. Está cá na cabeceira A água e os sonhos, essas palavras que circulam do fundo lodoso de um lago doce à superfície de vento e sal do mar de manhã. É assim que somos, rodamos circulando de bolhas e massas de águas quentes e frias, e pedras, plantas, silêncios e sal. A experiência de cada um traz na construída intimidade as imagens que lhe conferem mais sentido ao percurso. Porque as coisas são coisas somente assim: na palavra que tornamos palavra pela boca. 

“Tinha quase trinta anos quando vi o oceano pela primeira vez. Assim, neste livro, falarei mal do mar, falarei dele indiretamente, ouvindo o que dizem os livros dos poetas, falarei dele permanecendo sob a influência dos clichês escolares relativos ao infinito. No tocante ao meu devaneio, não é o infinito que encontro nas águas, mas a profundidade.” _ Gaston Bachelard

A profundidade é o que me prende, e daí essa força, talvez egoísta e com certeza silenciosa, de rodar colada como imã em torno desse fundo centro. Não me é essencial falar essas palavras altas e dispersas. Palavras, assim como coisas, também ocupam e podem ser tralhas. Não quero quartos cheios de tralhas, prefiro os silêncios, pontes, abismos. Mas é daí que surge o salto, o mergulho inverso necessário para que o abismo permaneça abismo. O movimento para fora, esse que expande para fora de si também é gigante porque leva a gente à mergulhos em outros centros e volitações que transcendem e permitem leveza ao caminhar.
Queria encontrar escadas que fizessem parar. E a cada vez que eu subisse você estaria lá assim como estava há três anos atrás. Mas não é assim, as coisas têm sempre seus tempos e se nos encontramos é sempre por cuidadosa disciplina ou sorte. Hoje acordei sentido esse peso vagaroso voltar para dentro e agradeci à força dos saltos recentes que me transformam acrescida de algo sutil e sem nome. Acredito que acrescemos sempre de outros, e esses outros nunca são fáceis porque a diferença não é óbvia, tão pouco macia ou doce. O diferente é quase sempre tormenta ou mesmo antes disso, o próprio essencial da vida inalcançável. Algumas pessoas têm maior facilidade com os outros, eu não, eu tenho saltos antigravitacionais.

“Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.” _Gaston Bachelard

Ana Gabriela baleia