Eu tenho saltos antigravitacionais. Como assim? Como é isso?
Algumas pessoas podem ser extremamente equilibradas na sua
respiração, ou seja, elas inspiram e expiram de forma regular na balança,
intercalam os movimentos para dentro e para fora. Admiro essas pessoas e
confesso de pronto que não tenho a menor habilidade para tal façanha
equilibrista. Eu vivo dentro. Dentro, fundo e mais dentro e mais fundo mergulho
e é de vez em quando que saio e aí chegamos a ele: o salto antigravitacional.
Imagine que a força que te prende é toda e tanta pra si e que,
sem aviso, ela resolve reverter a direção e expandir inteira em segundos...
esse é o movimento: nunca saí de mansinho, eu saio em saltos.
Sempre fui muito introvertida. Quem me conhece sabe que tenho
longos tempos de reclusão. Quando criança era inclusive extremamente tímida_ tinha
medo da minha voz soando alto nesses espaços com pessoas. Sempre tive cá meus
mundos subaquáticos e é sempre um exercício que demanda energia imensa sair
deles e circular fora. Lá fora é bom, mas é quente. E rápido também, lá fora é
tudo muito veloz e cheio e isso tudo me cansa. Mas às vezes eu saio, e saio com
tudo. Minha avó costumava dizer que eu
ligava a rádio besteirol e não parava. Porque de peixe calado eu virada de
repente uma pequena maluquete faladora de bobagens. E com a vovó era uma
delícia ser tagarela, era esse o exercício mútuo do riso pela ludicidade
expandida. Porque havia confiança e havia amor_ e havia na relação, também, o tempo para o
silêncio fundo das águas. E a expansão verdadeira, a meu ver, só pode vir desse
permitido mergulho no íntimo silêncio de cada um.
Isso de falar de águas é coisa séria e Bachelard bem o sabe.
Está cá na cabeceira A água e os sonhos,
essas palavras que circulam do fundo lodoso de um lago doce à superfície de
vento e sal do mar de manhã. É assim que somos, rodamos circulando de bolhas e massas
de águas quentes e frias, e pedras, plantas, silêncios e sal. A experiência de
cada um traz na construída intimidade as imagens que lhe conferem mais sentido
ao percurso. Porque as coisas são coisas somente assim: na palavra que tornamos
palavra pela boca.
“Tinha
quase trinta anos quando vi o oceano pela primeira vez. Assim, neste livro,
falarei mal do mar, falarei dele indiretamente, ouvindo o que dizem os livros
dos poetas, falarei dele permanecendo sob a influência dos clichês escolares
relativos ao infinito. No tocante ao meu devaneio, não é o infinito que
encontro nas águas, mas a profundidade.” _
Gaston Bachelard
A profundidade é o que me prende, e daí essa força, talvez
egoísta e com certeza silenciosa, de rodar colada como imã em torno desse fundo
centro. Não me é essencial falar essas palavras altas e dispersas. Palavras,
assim como coisas, também ocupam e podem ser tralhas. Não quero quartos cheios
de tralhas, prefiro os silêncios, pontes, abismos. Mas é daí que surge o salto,
o mergulho inverso necessário para que o abismo permaneça abismo. O movimento para
fora, esse que expande para fora de si também é gigante porque leva a gente à
mergulhos em outros centros e volitações que transcendem e permitem leveza ao
caminhar.
Queria encontrar escadas que fizessem parar. E a cada vez que
eu subisse você estaria lá assim como estava há três anos atrás. Mas não é
assim, as coisas têm sempre seus tempos e se nos encontramos é sempre por
cuidadosa disciplina ou sorte. Hoje acordei sentido esse peso vagaroso voltar
para dentro e agradeci à força dos saltos recentes que me transformam acrescida
de algo sutil e sem nome. Acredito que acrescemos sempre de outros, e esses
outros nunca são fáceis porque a diferença não é óbvia, tão pouco macia ou doce. O
diferente é quase sempre tormenta ou mesmo antes disso, o próprio essencial da
vida inalcançável. Algumas pessoas têm maior facilidade com os outros, eu não,
eu tenho saltos antigravitacionais.
“Não
é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima
sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.” _Gaston Bachelard
Ana Gabriela baleia