Escrevo.
Escrevo, durmo,
espero. Procuro um jeito de me levantar sem acordar do sonho.
O dia começa em
algum lugar do meu relógio. Eu não quero saber. Não sei que horas são. Eu só
escrevo.
Tarde da noite para
o senhor que assiste novelas. A última novela é às 21h. A mulher pobre e bonita
se apaixona por um homem rico e bondoso que se casa com uma mulher rica e
malvada. No intervalo o senhor se levanta para fazer xixi. Sentado na privada
ele reflete sobre um antigo amor. As contas de gás e água, a obra por terminar
no corredor, o desejo, velozmente reprimido, de beijar um outro homem na fila
do ponto de ônibus.
Homem não faz xixi
sentado.
Homem não dá o
rabo.
Mas homem também
não vê novela,....
_"então
foda-se! Faço xixi sentado e vejo a merda que eu quiser!"
Às
dez da noite, o senhor vizinho do prédio ao lado dorme. Na frente da TV,
esticado e mole, como um boneco de pano frouxo numa tarde de calor e sofá
bagunçando a sala.
O que uma sala tem?
O que compõe uma sala? No verão a sala é composta de calor. Sofás cobertos de
um fino lençol amenizam o desconforto causado pela sensação de suor em demasia
no corpo quente. Brinquedos se acumulam docemente pelos cantos. Na casa moram
crianças. Um coelho azul, uma chaleirinha de borracha, umas pedras verdes
turquesa. O som do ventilador é contínuo e forma uma teia estática sobre
o tempo. O trânsito entre a sala e a geladeira marca um percurso contínuo pelo
mesmo ladrilho quebrado. A geladeira está cheia.
Toc, toc, toc,
toc-tlac!
Toc, toc, toc,
geladeira.
A porta da
geladeira abre. Frescor na cara. Na cara mesmo, porque rosto é coisa de moça.
Cara é de cavalo, de homem, de palhaço, de pau. Não sabia bem o que cairia
melhor naquele momento. Talvez nenhum desses. Talvez tivesse cara de saco,
talvez estivesse de saco cheio pelo calor daquele verão dos infernos! Nunca se
acostumara com aquilo. Nunca se sentia tão desalmado como no verão. Não desalmado
de desumano, mas desalmado de sem alma mesmo, como se tivessem lhe amputado o
espírito como a um órgão.
A geladeira. O que
vim pegar na geladeira? Não lembro.... Deixa chegar mais perto e fechar os
olhos e sentir a pele querendo resfriar. Que delícia. Acho que aqui deve ser o
melhor lugar do mundo. Acho que as pessoas deveriam viver assim. Deveríamos
instituir um estado de pessoas que seriam infinitamente mais interessantes e
frescas. Pessoas que se declarassem odiosamente contra o calor doentio e marcassem
encontros na sessão de iogurtes do mercado. Para os carnívoros poderiam haver
belas histórias de amor nos frigoríficos de açougue.
Pão, couve,
bananas, chocolates, salsichas, biscoitos...
Um copo de água e
um pacote de biscoitos frio. Tudo é melhor frio. Voltou à sala. Iria ajeitar o
fino lençol sobre o sofá amassado, deitar o corpo torto novamente, apoiar o
pacote de biscoitos na barriga e comer aqueles farelos até começar a ressonar.
Não acredito que
pudesse não sonhar. Não acredito também que um dia o calor vai passar. Sei
racionalmente que o verão são quatro meses, sei também que da sala a geladeira
são sete passos e um ladrilho quebrado. Não acredito que dias de sonhos
ressonados e novelas requentadas sejam algo para cedo mudar.
Ana Gabriela Rebelo
Ana Gabriela Rebelo
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